Gregária por natureza, tenho algum talento pra fazer amigos, pra ser amiga. Posto que amizade talvez seja o único tipo de vínculo cujas regras se ajustam a cada qual, não é, obviamente, nenhum dom excepcional. Sem a pretensão de uma precisão aristotélica, vou catalogando meus amigos com uma ciência alegre e móvel: com alguns entrei num prazeroso esquema de checagem semanal — e é prazeroso porque é leve e delicado, e às vezes um “tá tudo bem sim” dá conta de toda uma ansiedade. Tem amigo que é só de meme, ou de farra, ou de pista, ou de fossa. Com outros, o prazo é esticado até o limite de uma súbita saudade ou de uma fofoca inadiável. Sem falar nos amigos de décadas, e que a conversa de 1998 continua sem atribulação ou desvio tranquilamente alguns filhos, empregos e casamentos depois. Se eu fosse uma pessoa normativa, tacava aqui logo um esplêndido esquema de arquétipos, e seria capaz de enquadrar cada um de vocês. Tudo vale, ninguém precisa se falar todos os dias pra continuar amigo. Amigo paira na vida, e a simples verificação da existência é toda a existência.
Amigo a gente faz no bar (como ensinou o grande filósofo Toninho Geraes), no trabalho (certifico e dou fé), na infância, numa festa, numa viagem, com amigos de amigos num curioso esquema de pirâmide de afinidades eletivas, no ódio compartilhado, num amor acabado, no futebol, na luta política, imagino que na igreja. Se eu, como Groucho Marx, nunca entraria para um clube que me aceitaria como sócia, amo encontrar amigos na calçada, rindo de quem sapateia no frio na fila de espera. Essa exuberância, eu entendo, não é pra todo mundo. Há os tímidos e os desconfiados, os carrancudos e os traumatizados, e a vida vai ficando mais difícil pra quem não acena para o jogo. Faz parte.
Procurei citações literárias e/ou musicais sobre a amizade mas não me satisfiz com nenhuma. Se eu nunca tinha pensado nisso, fiquei um tanto incomodada, porque tem uma pieguice romântica que não comporta a alegria sacana da amizade. Amigo não é coisa pra se guardar, Milton, essas eternas vaquinhas pastando o pasto dos dias. Tampouco deve ficar amarrado na promessa de eternidade contida na fórmula adolescente do BFF. Amigo não é forever, amigo dura o tempo do encontro, das afinidades. Já disse aqui que acho uma tolice das grossas isso de amor incondicional, porque amor tem condição sim. E amigo é o que a gente acompanha, e ama, e quer perto, porque mantém aquela base bonita do afeto e da risada. Eu não acredito em amigo sem risada. Perdeu o riso, perdeu tudo, porque não tem nada a ver com compromisso, e presença, e dívida. Isso chama trabalho, e amigo é o oposto de trabalho.
Do lado de cá, me esmero em ter um repertório razoável de anedotas de tamanho satisfatório, estar atenta a como eles estão, ouvir quando é preciso, e cozinhar pra eles, que é a forma de amor mais palpável que eu saberia demonstrar por alguém. Porque acredito que amigo a gente tem que seduzir, que agradar, que demonstrar amor, que dar vontade de estar junto. Não sou a amiga ideal, aquela de citação de Mario Quintana. Mas sou capaz de ouvir por horas, e me preocupo sinceramente com a menor pedra nos seus sapatos. Acolho seus defeitos, desde que não sejam uma chatice reiterativa ou equívocos indissolúveis. De amigo que me faz rir, aturo até astrologia.
Fui escrevendo esse tratado selvagem da amizade e me dei conta de que o que me faz ser amiga de alguém está muito perto do que me faz gostar de um livro. Tem que ensinar coisa, contar história, fazer rir, com um sistema maleável e regras muito das mutantes. Se for meio deprimido, tem que abrir caminhos, fazer ver uma coisa que eu não via antes. Se for de difícil acesso, deve derramar todos seus dons de uma vez só, e encharcar a gente de sua presença, ainda que rara. Se der o trabalho da atenção, deve vir com renovada alegria. E assim por diante. Veja bem, não tem nada a ver com uma visão utilitária — nem da leitura, nem da amizade. É a companhia no caminho.
Est’A Lábia não traz grandes novidades, sobretudo pra vocês, meus amigos, que estão acostumados a me ouvir contar as mesmas histórias over and over again. Eu repito mesmo, porque nunca sei direito em qual roda eu contei qual história. Já falei desses livros, já implorei pra vocês lerem, e se não leram, que decepção (mentira, amigos nunca decepcionam). Façam o que quiserem, mas vocês sabem que eu indico livros bons. Pois vocês que me leem, amigos ou não, saibam que vão encontrar aqui livros sobre amizades como essas que eu descrevi. Improváveis e acolhedoras, esplêndidas e tortuosas. Não vou discordar do Vinicius, que chegou na deliciosamente ébria fórmula do “amigo é o cachorro engarrafado”, mas vamos dizer que, por uma mui safada derivação, o amigo pode ser o uísque encadernado.
(Para Bruno, Ciça, Clarice, Fabrício, Irineu, Joana, Joca, Laura, Lucas, Paulo e meu irmão Tiago, que nunca saem do topo do meu whatsapp. E para todos os outros.)
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cardápio da semana
o mais mais
Um preferido da semana, aquele que dá pra indicar para todo mundo
Poeta chileno, Alejandro Zambra
Tradução de Miguel del Castillo
Companhia das Letras / 432 pp
Tudo é sublime e cotidiano em Poeta chileno. A história de amor entre Gonzalo e Carla começa na adolescência e poucos relatos de desejo são mais festivos que as traquinagens debaixo do poncho no início do livro. Depois, o desentendimento, o reencontro anos depois, com Carla já mãe, a incorporação do filho dela, Vicente, e por fim a relação entre Gonzalo e Vicente. Tudo improvável e improvisado como a vida real, e fez muita gente, da orelha do livro às resenhas mais sérias que esta, dizerem que esse é também um livro sobre paternidade, sobre parentalidade. Aqui do meu canto, sempre achei que este é um livro sobre amizade, a amizade no amor de Gonzalo e Carla, a amizade entre Gonzalo e Vicente. E quando os anos passam para a segunda parte, a amizade cheia de segundas intenções de Vicente e Pru, a jornalista doidinha que está fazendo uma matéria nascida pra dar meio mal sobre o panorama da poesia chilena contemporânea (imagina isso no Brasil). As cenas correm fáceis, a história é, como dizem os blurbs, “envolventes”. É engraçado e melancólico, como lembrar dos melhores anos da nossa vida, e uma literatura genuinamente acolhedora, porque nos faz amar Gonzalo, na sua ingenuidade fanfarrona de poeta frustrado. A gente gosta de Gonzalo e de Vicente como gosta de um amigo. E quando o livro acaba, fica morrendo de saudade.
Ainda: uma vida inteira apaixonada pelo Zambra, com um pico alto de adrenalina quando li este Poeta chileno, ganhei um presente quando meus amigos Paulo Roberto Pires e Guilherme Freitas, impávidos editores da revista serrote, me convidaram pra entrevistá-lo num festival serrote. Foi bonito, pelo menos pra mim, e eu posso provar.
passou batido
Uma pérola em que quase ninguém prestou atenção
Matei um cachorro na Romênia, Claudia Ulloa Donoso
tradução Bruno Cobalchini Mattos
Mundaréu / 360 pp
Flor no asfalto, a amizade que este livro narra é improvável, e nasce entre uma deprimida ultramedicada e seu aluno romeno, irremediavelmente deslocado, a quem ela acompanha da Noruega, onde eles vivem, até a Romênia para o funeral do pai dele. Tudo ali tem a marca inconfundível do deslocamento do exílio: uma latina-americana dando aulas de norueguês, um romeno com um emprego precário que cultiva o interesse em coisas que vão além de própria subsistência, os desenhos que eles dividem (aquele respiro resfolegante que a arte pode significar), uma viagem descabida que, de fato, acontece, e, sobretudo, a comunicação, emissor e receptor, no laço do interesse, da curiosidade, do afeto e da companhia, terreno fértil em que a amizade insiste em medrar — aliás, amizade entre os protagonistas e várias das pessoas que encontram no caminho. O livro todo parece envolto em uma névoa de clonazepan, tudo meio alucinante na vida desses dois exilados, que inventam a amizade possível encharcada de sotaque e desentendimentos, num cenário cinza-soviético, mas com encontros curativos, porque em volta tudo é ferida. É um road book, essa grande viagem, mas também é sobretudo a amizade desses dois perdidos. Se no amor, a fórmula costuma fracassar, na amizade costuma dar certo, porque se escora nas aparas. Este é um livro sobre aprender a se escorar nas aparas.
são nossas coisas
Um brasileiro realmente bom, pra gente ter algum orgulho nessa vida
A palavra que resta, Stênio Gardel
Companhia das Letras / 160 pp
Tem uns livros pelos quais a gente se apaixona logo na sinopse, e esse é um dos que eu mais tenho contado a sinopse por aí. O livro é um sucesso estrondoso, e muito provavelmente você já conhece a história de Cícero e Raimundo, que viveram um caso de amor impossível na zona agrária do Ceará quando eram adolescentes e foram separados, muito jovens, pela impossibilidade absoluta do amor assim. Quando se separam, Cícero deixa uma carta impossível, porque Raimundo é analfabeto. A história do livro é o caminho de Raimundo até a leitura dessa carta, querendo aprender a ler para decifrar essa memória. Decifrar, logo se vê, em todos os sentidos, porque ele mesmo não dá conta de lidar com isso. Pois bem. A amizade chega quando, no caminho, ele encontra Suzzanny, uma mulher trans fundamental e transformadora na jornada desse personagem tão delicadamente complexo. É uma amizade dura, cheia de violência, mas a violência necessária para uma compreensão deste tamanho. Raimundo se perdeu no amor, e se encontrou na amizade. E talvez Suzzanny seja das personagens mais bonitas da literatura brasileira.
tem sempre um clássico
Um clássico é um livro que nunca terminou de dizer o que tinha de dizer
Os meninos da rua Paulo, Ferenc Molnár
Tradução Paulo Rónai
Companhia das Letras / 272 pp
Eu ia começar dizendo que este livro é o pai de todos os livros da coleção Vagalume, mas talvez soe ofensivo para os fãs mais aplicados da literatura húngara. Em minha defesa, digo que não é porque eu seja uma das brasileiras que mais levam a sério a Coleção Vagalume, mas por sua imensa capacidade de botar literatura na infância e na adolescência, de resgatar o encanto do olhar mais puro, sem sucumbir à babaquice de uma ingenuidade fabricada que nada tem a ver a safadeza, a impureza, a malícia e a maldade de que só meninos são capazes. Se tem uma coisa em que nunca acreditei é na pureza da resposta das crianças. Os meninos da rua Paulo são a resposta a isso em escala mundial, porque ao contar a amizade e as aventuras dessa turma de amigos, é universal no que há de mais lindo na infância. Todo menino é um herói e se ninguém faz amigos como os que faz aos treze anos, também nunca mais vai sofrer, ou amar, ou achar graça, ou sentir dor como fez aos treze. Tudo isso pode ser uma hipérbole, é claro, eu mesma não tenho lá lembranças edificantes dos meus treze. Mas saber usar isso a serviço da literatura é bonito e rende. Baita clássico inesquecível.
LGBTQIA+
A fúria e a festa da vida travesti
O parque das irmãs magníficas, Camila Sosa Villada
Tusquets / 94 pp
Tão triste quanto toda história de mulheres trans que são expulsas de casa pela violência da inadequação, este livro, sem recusar a dor e a desgraça inevitáveis dessas vidas marginais, dá um turning point exuberante pela afirmação da liberdade, do acolhimento, da possibilidade de transformação, e sei lá mais de quê. Parece épico e gigantesco, e é um pouco, mas sobretudo tem cara de fábula, mas uma fábula muito humana e possível, porque conta o que acontece com a vontade quando encontra um jeito de acontecer. Na comunidade de travestis que vivem no Parque Sarmiento, em Córdoba, a estudante trans encontra muito mais que um jeito de ganhar dinheiro enquanto estuda na universidade. Encontra pela primeira vez na vida um tipo de pertencimento feroz, porque é cheio de nuances, mas é respeitoso e amigável, talvez simplesmente por reconhecer a sua existência em toda sua plenitude. No mais, é uma história de imaginação, susto, beleza, atrocidades, explosões, num manifesto de direito à vida como poucas vezes visto. Um livro que é um escândalo de doçura.
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Para nossa sorte, a amizade está em toda parte. Por isso, quando fui escolher os livros para esta tão amigável A Lábia, de vários eu já tinha falado aqui. Vou deixar os links, e é sempre aquele empurrãozinho para quem não leu voltar lá nas Lábias ancestrais. Vamos dizer que quem avisa amigo é.
Em Seul São Paulo, do Gabriel Mamani Magne, a amizade é entre dois primos que se encontram e se afastam enquanto crescem (livro maravilhoso para indicar para adolescentes, digo por experiência própria). *** O que você está enfrentando, da Sigrid Nunez, eu só mencionei nessa news, mas valia uma Lábia inteira só pra ele: foi daí que o Almodóvar tirou o O quarto ao lado, e, caramba, que livro lindo *** O maior ser humano do mundo, do Pedro Guerra, tem inúmeras qualidades, mas a amizade entre o narrador e seu fiel escudeiro é uma nesga de ternura num céu de sarcasmo. *** Do hit do verão De quatro, da Miranda July, vocês muito ouviram falar, mas dentre tanta gente doentinha a amiga é uma personagem que apazigua nosso coração em fúria. *** Notas para um naufrágio, para quem só derramo amor (sério, gente, todo mundo que lê este livro cai de amores), tem um casal de amigos que eu gostaria muito, muito mesmo, que fossem meus. *** Triste cuíca, da Julia Wähmann, é também sobre a importância da amizade em meio ao caos brutal da pandemia. *** Cadelas de aluguel, da Dahlia de la Cerda (que vem pra Flip!), fala da amizade entre as mulheres, e da força descomunal que ela tem. *** (Eu poderia aqui ficar falando pra sempre, mas é domingo de páscoa, e vou ali sofrer com o Palmeiras.)
Servindo bem para servir sempre, botei links em todos os títulos dos livros de que eu falo aqui. Você jamais encontrará um link da Amazon: são todos caminhos para as editoras que fazem esses livros incríveis. Claro que você pode comprar na livraria mais perto da sua casa, compre livros de quem ama os livros, sempre. Se for comprar na Amazon, paciência, entendo, mas pelo menos faça isso com culpa. Pode ser uma militância nanica, mas é a minha militância.
Nesse fim de semana engoli a minissérie Dying for Sex. A amizade feminina é central para a trama. Deixo minha singela indicação
que coisa mais linda "a vida vai ficando mais difícil pra quem não acena para o jogo", e agora preciso absolutamente ler Matei um cachorro na Romênia. O passou batido está sendo guia de leitura obrigatória por aqui. Grazie!