A Lábia______03
"É preciso escolher: uma coisa não pode ser ao mesmo tempo verdadeira e verossímil" (G. Braque)
Essa é uma A Lábia quase toda de autoficção. Quase. Ou não. Há algumas semanas, fechou as portas o sebo do Amadeo, ali na Cristiano Vianna, em Pinheiros, um lugar em que passei muitas tardes de 2000 e 2001, ainda no rabicho da faculdade, sentada num banquinho entre as prateleiras de discos e livros. Foi lá que comprei meus vinis do Thelonious Monk e do Zimbo Trio com a Elizeth. Foi lá que eu tive uma epifania lendo Graciliano (o Amadeo me vendeu uma segunda edição de Angústia por R$6, me fazendo prometer que este livro nunca sairia da minha casa). O Amadeo vendia por R$10 os livros preferidos dele, que achava que todo mundo tinha que ler, e cobrava R$250 num Paulo Coelho. Vi ele fazer isso inúmeras vezes. Ele era um velho italiano alto, magro, de cabelo comprido branco-amarelado puxado pra trás, com óculos grossos, fumante inveterado, que enchia o sebo de fumaça, mau humor e as melhores tiradas (humor mal-humorado é meio o meu tipo, quem me conhece sabe).
Um dia, eu tava ali encostada lendo qualquer coisa e entra no sebo um sujeito nitidamente “gente de teatro”. Não sei muito explicar o que é isso, mas é roupa, postura, extroversão, impostação de voz, sei lá. O sujeito, educadíssimo, vai até o Amadeo e solta:
— Eu sei que é ridículo, o senhor não se ofenda, mas estou montando um cenário que precisa de muitos livros. O senhor aqui tem livros falsos?
Eu gelei. Já podia ver o Amadeo escurraçando aos xingos o gente-de-teatro. Só que ele, com aquele vozeirão, com aqueles olhinhos por trás dos óculos, uma risadinha de canto, meio sabendo que eu estava tensíssima, manda essa:
— E o senhor conhece algum que seja verdadeiro?
Pois bem. Tudo é meio verdadeiro, nem tudo é verossímil. Ou vice versa. Se for real, dá mais tesão de ler? Alguém tem coragem de dizer que um personagem ficcional do tamanho da Diadorim, do Bentinho, não existe “de verdade”? No fundo, não tem importância, porque, afinal, tudo nessa vida é invenção. E literatura, como diz a Noemi Jaffe, não é “sobre”. Literatura é linguagem. Fiquemos com a lição do velho Amadeo e aqui estão livros, “de verdade” ou não, que contam boas histórias.
(E um beijo pra filha do Amadeo, minha amiga querida Raquelzinha, que, no dia em que ele morreu, correu pra minha casa e me consolou deveras.)
PS. A frase ali no alto, sobre o verdadeiro e o verossímil, é do deliciosíssimo surrealista Georges Braque, em O dia e a noite (Editora 34, tradução do Samuel Titan Jr.), um livrinho de aforismos que é uma pérola e tem me ensinado muitas verdades, procurem saber.
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cardápio da semana
o mais mais
Um preferido da semana, aquele que dá pra indicar para todo mundo
O amigo
Sigrid Nunez
tradução Carla Fortino
Instante
216 pp
No material sobre o livro que a agente literária mandava para a editoras, tinha esse resumo telegráfico: “Small apartament, big dog”. É muito bom (e simpático), porque nessa concisão de estilo você já sabe que vem incômodo, humor, afeto, adaptação. O livro começa como uma carta, triste mas nem por isso menos debochada, que a narradora vai escrevendo para um grande amigo que se matou há pouco. Fala sobre o tédio da vida, as coisas de que os dois riam, a relação de ciúme meio engraçado que ela tinha com as mulheres dele, o que é a saudade, o que significa o suicídio, e como a gente faz pra viver depois que alguém muito querido vai embora. O amigo, vamos saber, deixa para ela, que mora num estúdio minúsculo em Manhattan, um cachorro dog alemão — e daí o resumo. E o resto é história.
A Sigrid é brilhante porque é dessas escritoras que sempre conseguem dar uma volta nas coisas óbvias, e apontar a obviedade por outro lado, de um jeito que o mundo (a cidade, as pessoas, seus amigos) nunca mais ficam iguais. E ela é erudita do jeito certo, porque é generosa, engraçada, sem querer esfregar a erudição na cara de ninguém. Ela é adepta dos desvios, e cada história muda na esquina da página, e vai longe e, quando a gente menos espera, tromba com a primeira história de novo. E ela ainda é altamente afetiva, porque faz explodir umas belezas quando olha pra vida dura, tão carente delas. E tudo isso sem babaquice, sem sentimenttalismo piegas, sem seriedade demais. Ninguém mais longe de ser moralista, esse mal do século. Ela é aberta e dá pra ver, enquanto ela escreve, suas mil fichas caindo. Eu gosto de pensar que tem os escritores que a gente admira, e tem os que a gente ama. A Sigrid é altamente amável.
O mesmo elogio rasgado eu poderia dizer para qualquer dos livros dela: Sempre Susan (um retrato da Susan Sontag que a vida, essa fanfarrona, fez calhar de ser sogra da Sigrid), O que você está enfrentando (das coisas mais lindas sobre a morte, que foi o livro em que o Almodóvar se baseou para este belíssimo O quarto ao lado), Os vulneráveis (a melhor coisa que eu já li sobre a tenebrosa época da pandemia). Leiam a Sigrid. Gostoso demais.
Todos os livros são editados pela pequena valente editora Instante.
passou batido
Uma pérola em que quase ninguém prestou atenção
Isso é prazer + A dificuldade de seguir as regras
Mary Gaitskill
tradução Bruna Beber
Fósforo
136 pp.
A Mary Gaitskill é uma escritora matadora. Fala de sexo, de tara, de doencinhas eróticas em geral com uma desenvoltura de ruborizar o Nelson Rodrigues. Seu Mau comportamento (Fósforo, tradução da Bruna Beber) tem cara de clássico contemporâneo, cult mas pop, porque o que ela faz nesses contos você não acha aí em qualquer Cinquenta tons de cinza. Ela tem também um livro de memórias, O gato perdido (Todavia, tradução do Izalco Sardenberg), que dá uma humanizada nela, e a gente até vislumbra um coração terno.
Mas eu queria falar desse Isso é prazer + A dificuldade de seguir as regras, porque acho meio absurdo que não se fale mais desse livrinho, em que um conto e um ensaio fazem umas das mais valiosas discussões sobre abuso e cancelamento, isso tudo que está aí. No primeiro, escrito no calor do #metoo, um editor fodão de NY recebe uma série de acusações de abuso das mulheres que trabalharam com ele. Enquanto ele tenta entender o que está acontecendo, meio “pobre de mim, não fazia ideia”, sua amiga e também editora, ligeiramente afastada, olha pra ela com aquela mistura de complacência e vingança que só as mulheres da geração dela têm, e se pergunta: manipulador cruel ou mero joguete do machismo estrutural?, dá pra perdoar? etc etc.
Bem mais antigo, de 1994, o ensainho que segue conta um tenebroso date rape de que ela foi vítima, e parte disso para pensar sobre a educação das mulheres, do que nos cobram, e o que isso faz conosco. Matadora, adulta, séria, certeira, sem moralismo nem concessão: do meu ponto de vista, o único jeito que dá pra conversar sobre isso.
porque me ufano
Um brasileiro realmente bom, pra gente ter algum orgulho nessa vida
Saia da frente do meu sol
Felipe Charbel
Autêntica Contemporânea
168 pp
O Felipe (o narrador?) tinha um tio, um sujeito avulso, de vida oblíqua, que habitava com silêncio e fumaça de cigarro os quartinhos de empregada da família, na Zona Norte do Rio. Depois da morte dele, pessoa sem herdeiros, ficaram as coisas — fotos, documentos, vestígios. O narrador (o Felipe?) começa uma investigação desse cara misterioso, que guardava escondidas fotos suas, o corpo livre numa praia deserta, ao lado de um homem tão bonito quanto ele. Ou o retrato do baile de carnaval, numa das poucas imagens em que se vislumbra um sorriso. Aí a gente vai conhecendo o tio Ricardo, num cenário de azulejos beges, em meio ao pacto silencioso de uma família barulhenta, tudo descrito num estilo chique demais — porque o livro conta a história nesse tom de fofoca sentimental, de investigação lírica. E como o Felipe escreve bem, como manobra as referências mais altas num texto ao rés do chão. Tem luta de classe e malabarismo narrativo, tem história miúda e antropologia suburbana, tudo para pintar, pelas mãos do tio Ricardo, o retrato de um Brasil feito de afeto e rancor, carnaval e miséria, expansão e mistério. Bonito demais.
esse é bom mas tem melhor
Se você gostou desse que tá todo mundo lendo, vai nesse pra prolongar a onda
O invencível verão de Liliana
Cristina Rivera Garza
tradução Silvia Massimini Felix
Autêntica Contemporânea
304 pp.
A comoção que o livro Melhor não contar, da Tatiana Salem Levy, causou tem vários motivos. Muito se falou da coragem que é abrir uma conversa tão dolorosa de um abuso sofrido na infância, pelo padrasto. Alguma coisa se falou sobre a delicadeza de denunciar um abusador que é, além de padrasto, também uma espécie de herói nacional. E ainda a emoção dolorosíssima que é um acerto de contas com a própria mãe de corpo ausente, porque não houve tempo pra isso, justamente por uma superestrutura em que tudo dizia que era melhor não contar. Tudo tão importante, tão visceral, que o livro foi estopim de muitas conversas fundamentais, e isso já é um mérito, claro, não sou maluca. Mas literatura aparentemente também precisa ter linguagem, e achei que ali a linguagem faltou, talvez por alguma insegurança, talvez por um desleixo com a técnica, talvez até por essa emoção desenfreada que é contar o que ela resolveu, enfim, contar.
Desenterrar uma dor desse tamanho não é simples, óbvio. Mas dá pra fazer isso com uma prosa deslumbrante e eu posso provar. É o que acontece com o monumental O invencível verão de Liliana, da jornalista mexicana Cristina Rivera Garza. Trinta anos depois do feminicídio que tirou a vida da única irmã, Cristina, que mora nos EUA há décadas, volta para o México para fazer reabrir a investigação. O livro é a história da busca não só da justiça, porque feminicídio não era crime tipicado na época, mas também uma tentativa de entender a morte, a violência, o machismo, o luto e a culpa do luto, a saudade, o buraco indizível que é essa perda brutal. Ao procurar justiça, ela reconstrói o crime, mas também a vida, o desejo, o futuro e a existência pulsante de uma mulher livre de 20 anos que o machismo aniquilou.
Quando Cristina volta, entretanto, carregada de tudo isso (dor, luto, emoção a dar com pau), ela volta armada. Dos anos de jornalismo, da sua inteligência brilhante, de uma sensibilidade aguerrida que se recusa a derrapar em qualquer sentimentalismo, em que cada frase é força, inteligência implacável e reflexão profunda. Tudo isso faz um livro impressionante, com cada coisa em seu lugar. A emoção e a importância do que deve ser dito podem, claro, guiar a arte. Mas para fazer literatura de verdade, a gente te que aprender a contar.
Servindo bem para servir sempre, botei links em todos os títulos dos livros de que eu falo aqui. Você jamais encontrará um link da Amazon: são todos caminhos para as editoras que fazem esses livros incríveis. Claro que você pode comprar na livraria mais perto da sua casa, compre livros de quem ama os livros, sempre. Se for comprar na Amazon, paciência, entendo, mas pelo menos faça isso com culpa. Pode ser uma militância nanica, mas é a minha militância.
Buscando leveza em bigornas, me fez bem ler seu escrito, lembrei do meu Amadeu, da livraria Amadeu em Belo Horizonte que faleceu ano passado e que me vendeu uma edição antiga do "De segunda a um ano" do John Cage por 40 reais. Más ferramentas requerem melhor destreza. Obrigado por escrever.
“Pode ser uma militância nanica, mas é a minha militância”. Isso me pegou lindamente, obrigada! 💛