É um lugar comum dos mais sem-vergonha dizer que literatura é viagem. E que belos momentos tivemos com literatura de viagem, desde a carta do Pero Vaz de Caminha, (ah, aquele estilo corrupto-sensorial da nossa primeira crônica!) às viagens alucinantes do Jules Verne (a lugares inusitados como o centro da terra, o fundo do mar ou os EUA). A gente gosta de viagens e de seus relatos porque o desejo de deslocar-se é humano — seja por aventura, fuga, oportunidade, paixão, curiosidade, ganância, desespero. Tudo é movimento.
Não há nada de lírico, entretanto, na brutalidade com que têm sido tratados os imigrantes do mundo inteiro. Gente que está fugindo da guerra, da miséria, da vida que lhe foi imposta. As cenas horrendas das deportações nos EUA são de uma violência que não sei nem dizer. E tudo em nome de um patriotismo bizarro de que nós, aqui no Brasil, só sentimos o cheiro, mas imaginamos o gosto. Foi um obscuro pensador inglês que cravou a verdade lapidar: O patriotismo é o refúgio dos canalhas.
Eu sempre gostei de literatura de viagem, e numa era longínqua em que eu estudava filosofia a sério tinha um projeto sobre “ver pelos olhos dos outros”, expressão que Voltaire, no século 18, usava para mostrar o caminho para ser menos burro. Esta A Lábia traz livros sobre deslocamentos, sobre gente que constrói de a vida num lugar novo, que aprende a fazer sua a terra de outros. Mas também sobre voltar para casa, depois de percorrer o mundo. São todos livros lindos que, quando a gente lê, vai ficando um pouco menos canalha.
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Uma historinha:
A Ciça, a amiga que fez o design dessa linda newsletter, ouviu um dia perguntarem para um menininho sobre a escola dele, que recebia alunos vindos do mundo inteiro:
— Tem muito imigrante na sua escola?
E o menininho:
— Não, só tem criança.
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cardápio da semana
o mais mais
Um preferido da vida, aquele que dá pra indicar para todo mundo
Notas para um naufrágio
Davide Enia
Tradução Wander Melo Miranda
Ayiné
260 pp
Davide é um dramaturgo curioso que resolve passar uns dias em Lampedusa, a ilha que é o ponto da Europa mais perto da África. Ele tem um casal de amigos cuja família é de lá, e vivem bem há décadas, naquela tranquilidade praiana. Acontece que Lampedusa nos últimos anos virou um ponto de chegada de imigrantes africanos de vários países que querem entrar na Europa. E é a história dessa transformação que o Davide conta tão lindamente. Porque ele vai entrevistando várias pessoas da ilha, tentando entender o que é passar do isolamento insular para porto de chegada, o que isso significa na rotina da cidade, como os moradores trabalham pra transformar o medo em abertura, o pânico do diferente no entendimento do que vem de fora. As histórias que ele conta às vezes são terríveis — relatos de balsas ilegais que naufragam matando 400 pessoas, e a dureza absurda dessa paisagem do fracasso humano que são 400 corpos (homens, mulheres, crianças) boiando no mar. Mas também tem relatos inesquecíveis, como o de um pescador da ilha com um ligeiro pendor para o fascimo, mas que acaba trabalhando de voluntário: “Se tem alguém em perigo, nós ajudamos. Essa é a lei do mar”.
E o livro tem também a relação de Davide com o pai, médico aposentado naquela vertigem da desimportância, que ele leva para a ilha para fotografar a transformação; a admiração pela sorte do amor tranquilo do casal dos amigos (que belíssimos personagens, sempre fumando com os olhos perdidos no mar), e mais um monte de situações em quem a gente se vê, num texto com ternura e humor sobre ser humano, ter medo, mudar, acolher.
(Digo mais: tá baratíssimo no site da Aiyné).
passou batido
Uma pérola em que quase ninguém prestou atenção
Murambi, o livro das ossadas
Boubacar Boris Diop
Tradução Monica Stahel
Carambaia
224 pp
É inacreditável que o mundo não tenha acabado em 1994 quando em cem dias um genocídio matou quase um milhão de pessoas em Ruanda. A rixa histórica entre duas etnias rivais, os tútsis e os hutus, postas no mesmo território por uma colonização violenta e arbitrária, fez de Ruanda um território de disputa sangrenta. Pra mim, para entender o tamanho disso, só mergulhando num livro como esse.
Quatro anos depois do genocídio, um programa cultural convidou escritores africanos de vários países para visitar os escombros do país: valas comuns, escolas que funcionaram de refúgio e de palco de massacres, estradas interditadas, a herança material da brutalidade — era o cenário que visitavam para, nem digo entender, mas pelo menos vislumbrar o que foi essa tragédia. O escritor senegalês Boubacar Diop era um deles e escreveu esse livro magistral, que a Toni Morrison chamou de milagre.
Nele um professor ruandês que morava há anos fora do país, filho de mãe tútsi e pai hútu, volta a Ruanda para entender o que aconteceu com sua família durante o massacre. Isso era uma questão: quem matou, quem morreu. É muito duro, porque mistura culpa e raiva e luto e ódio e injustiça e esse caldeirão todo. E Diop monta o livro conduzido por Cornelius, o protagonista, mas faz uma colagem muito impressionante do cenário que encontrou por lá. É uma discussão sobre pátria, sobre identidade, mas sobretudo sobre humanidade. E dá na gente uma sensação de que quando chegamos num ponto desses estamos, sim, perdidos. Mas a arte é capaz de elaborar isso e transformar numa coisa de algum jeito bonita (como também são os livros da Sholastique Mukasonga publicados pela Nós, tudo um absurdo de coisas bonitas arrancadas da barbárie). Acho que está nessa alquimia o milagre que a Toni Morrson viu.
por que me ufano
Um brasileiro realmente bom, pra gente ter algum orgulho nessa vida
Seul, São Paulo
Gabriel Mamami Magne
Tradução Bruno Cobalchini Mattos
Todavia
152 pp
Tá, não é bem um livro brasileiro: apesar de morar em Goiânia, o Gabriel é boliviano e escreve em espanhol. Mas vale porque o livro tem um sotaque, mais que brasileiro paulistano. Espécie de Educação sentimental bolivano, é a história de dois primos adolescentes que crescem se divertindo como podem na rotina meio frívola meio feroz que a adolescência impõe entre hormônios, desejo, obrigação e uns sonhos irrealizáveis. O primo que morou em São Paulo é louco por K-Pop e pelo Corinthians, o outro encontra um amigo mais velho que apresenta uns livros (e o mundo) e eles vão descobrindo meio juntos, meio por conta própria o sexo, as drogas, o capitalismo, a dureza, o afeto, tudo, num cenário de ônibus lotados, empregos precários e um patético serviço militar obrigatório. É tudo muito singelo, como costumam ser as histórias adolescentes, mas tem uma esperteza, uma malandragem naif, um humor que ri das próprias más escolhas que faz um livrinho tão boa companhia, que atravessa as veias da América Latina e mostra que, sim, adolescente é meio tudo igual, mas uns são mais legais que os outros.
De todos os lugares
Persépolis, da Marjane Sartrapi, vocês ja conhecem, né? Tudo que eu sei sobre o Irã veio daí, e ainda tem o mérito de ser o livro que me fez gostar de HQ. *** Um dos livros mais bonitos do mundo sobre pessoas se acolhendo na miséria é o A vida pela frente, do Romain Gary, sobre o encontro de um menino órfão imigrante e uma ex-prostituta judia, sobrevivente de Aushwitz. *** Em Todos os caminhos estão abertos, Annemarie Schwarzenbach e sua namorada, duas mulheres criativas, livres, inteligentes, saem de uma Suíça recém ocupada pelo nazismo em busca de um ambiente mais calmo… no Afeganistão, e escrevem um diário de fotos e costumes, observações e deslumbramentos. *** Outro livro que atravessa a Europa, mas no século 10 e em sentido contrário é Viagem ao Volga, um testemunho de uma viagem do enviado do sultão de Bagdá às “terras do norte”. É uma peça de antropologia, mas é delicioso para entender como se forma uma imaginário. *** Bom, e o Brasil tem aqui dentro mesmo relatos de imigrantes que são uma comoção só: não é um pouco estrangeira a Macabéa, de Hora da estrela? E o Macunaíma, naquele delicioso delírio de linguagem é também um jeito de ver o mundo com os olhos de outro.
Fiz essa mais curtinha, pra não deixar ninguém agoniado. Adoro quando vocês dizem se funcionou a da semana. Já já tem mais.
esse boletim parece doce de leite com café novo.
Anotando as dicas todas aqui. Esse Notas para um naufrágio me deixou curiosíssimo!
P.S. Ri alto com a do Julio Verne e os eua!