Eu adoro quando me perguntam “o que eu ando lendo” porque eu de fato ando lendo. Literalmente. Ando na rua lendo livros. Nunca calhamaços, em geral livros menores, mas eu gosto demais dessa leitura andarilha. Aos 20, eu tive um namorado também muito leitor que sempre que eu saía da casa dele ficava na janela do 13o andar esperando eu virar a esquina e a página, acho que com medo que eu me espatifasse. Hoje, meu filho fica meio deseseperado com a iminência de um acidente. Nessas décadas de leitora andarilha, bati feio a cabeça numa árvore inclinada, perdi três ou quatro ônibus, passei batido por algum conhecido, errei o caminho e tive que voltar um ou dois quarteirões, mas nunca tombo, atropelamento, topada. Acho que tô no lucro.
Não leio sempre, como não é sempre que eu pego ônibus ou metrô lendo. Aprendi com o João do Rio que a rua também é pra ser lida, e a literatura latinoamericana certamente seria mais capenga se o Cortázar, em vez de xavecar mocinhas nos reflexos das janelas do metrô, estivesse, como eu, com a cara enfiada num livro (dele mesmo?). Mas é hábito, fazer o quê, e o resultado é sempre uma sinestesia literária delirante, como se os livros ficassem um pouco impregnados das ruas em que foram lidos. Assim, tem um tem ensaio da Virginia Woolf que me lembra muito a avenida Sumaré, um conto do Sergio Sant’Anna que tenho certeza que desce a Teodoro Sampaio, um livro do James Baldwin que tem cheiro de avenida Paulista, um poema da Angélica Freitas que é a cara da Consolação.
Tem uma onda, acho, ACHO, de publicar livros menores. Déficit de atenção (oi, celular), crise do papel, falta de tempo, preço da tradução — acho que tem um pouco de tudo, mas o fato é que é satisfatório demais pegar um livro capaz de ser devorado em poucas horas. Minhas caminhadas leitoras agradecem, porque seria complicado andar por aí portando um Guerra e Paz (outro dia vi um rapaz lendo Graça infinita no ônibus e ele me pareceu bem sofrido, apesar dos bíceps desenvolvidos). Coisa boa na vida é terminar um livro, virar a página derradeira, ler a última palavra. É o antifeed eterno, o antiscroll, a paz do final, a ilusão das coisas encerradas, mesmo quando as coisas não acabam bem, mesmo quando aquele livro não tem nada de ficção de cura. Toda vez que eu fecho um livro recém acabado, com suas folhas dobradas, eventuais manchas, sujeirinhas e as marcas do mundo, é um descanso nesse mundo que tá tão raro dele.
Hoje as dicas são, pois, de uns livros pequenos, que eu li rápido, ainda que tenham feito a caminhada mais lenta. Pra renovar a vontade de andar com eles por aí — mesmo que você não leia andando, sou totalmente ciente de que é arriscado — mas leve na bolsa, no bolso, no colo. Carregar um livro nunca é demais.
Dois P.S.s
. A frase lá em cima eu tomei emprestado da Sob Influência, uma editora surrealista, chique, anarquista, com o design mais lindo. Procurem saber.
. Descobri há pouco tempo que somos uma pequena confraria, os do que andam lendo. A Manu Stelzer, leitora voraz que trabalha na Livraria Megafauna, e o Caetano Galindo, esse gentil herói da Língua Portuguesa. Mais alguém?
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cardápio da semana
o mais mais
Um preferido da semana, aquele que dá pra indicar para todo mundo
Felizes os felizes
Yazmina Reza
tradução Mariana Delfini (<3)
Ayiné
162 pp
Romance fragmentário, romance mosaico, é como que construído de vários contos, cada um deles narrado do ponto de vista de um personagem, que dá nome ao seu capítulo. Essas pessoas entram em conflito, sentem ciúme, criam filhos, trabalham, têm casos, bebem, se divertem e, de cada capítulo, se pesca um personagem do próximo. É brilhante como ela vai mudando de narrador, porque, a cada mudança, muda não só o ponto de vista, mas uma escala de valor, e os desejos, e os motivos. E um personagem que é autoritário, ou ciumento, ou careta, em uma parte, parece, quando narra a si próprio, autêntico, inseguro ou só medroso. É um recurso cinematográfico, muito bem realizado, e já seria lindo se fosse isso. Mas a Reza vai além, porque é de uma sensibilidade calorosa com as pessoas, porque tem um humor rascante, porque sabe ser muito sexy, mas também muito cruel, e muito terna, e muito cínica. A gente vai lendo e entendo que esse mosaico, essa costura, é toda legítima, e que qualquer julgamento seria bizarramente tolo. Ele tem um tom tristonho, e talvez seja por aquele fato que alguém disse que tragédia é quando todo mundo tem razão. Mas ele também é de uma euforia gritante, essa euforia que dá quando a gente entende as coisas. No fim, é um livro humano, comovente, grandioso no seu jeito de simplesmente contar a vida real. E que bonito é contar história assim.
Ainda duas coisas: 1) o texto de orelha e do site é uma bobagem. Se apressa em julgar todo mundo, enquanto tudo que não dá pra fazer é julgar. Não acreditem nele. 2) Tá no precinho no site da Aiyné, que entrou nessa onda meio maluca de liquidar tudo pra mudar as capas, o que não é muito legal com as livrarias. Mas você aproveite, porque essa edição é linda.
passou batido
Uma pérola em que quase ninguém prestou atenção
Esperando Bojangles
Olivier Bordeaut
tradução Rosa Freire d’Aguiar
Autêntica Contemporânea
128 pp
Eu adoro livro narrado por criança maluca. Tem o A vida pela frente, o Meu pai, minha mãe, a Trilogia dos Gêmeos, e eles vão voltar aqui de vez em quando, se não ganharem uma A Lábia toda pra eles. Uma amiga querida, designer precisa e grande leitora (beijo, Cris Gu), chama de “livros de criança podrinha”, e eu acho essa definição perfeita porque a gente gosta desses livros não é pela ingenuidade, pela pureza da resposta das crianças, aliás, deus me livre. Eu gosto porque é uma maldade sem filtro, como se fosse um adulto cru, antes de ser cozinhado.
Esse aqui é uma pérola do estilo, porque o menino que narra é bonitinho demais — torto e gentil, carente e sabido. E ele narra a história de amor (e de devoção, deslumbre, paixão, explosão!) entre o pai e a mãe, desde que eles se conheceram até a infância dele, numa casa totalmente disfuncional, com amigos absolutamente loucos, mas, caramba, tudo tão amoroso e tão delirante que parece um Alice no País das Maravilhas com álcool e noitadas sem limites. É um filtro infantil, mas com temas nada infantis, e aí a tristeza, a loucura, a depressão dessas pessoas tão livres, tão lindas, mas incapazes da vida adulta, como se renunciar à farra e à imaturidade fosse renunciar também à alegria e à vida. É um livro lindo, curto, transformador. Mil estrelas.
(Já recomendei esse livro pra praticamente todo mundo. Adoro quando as pessoas leem e me dão razão. Se você já leu por minha causa, obrigada. Se ainda não leu, não acredito.)
são nossas coisas
Um brasileiro realmente bom, pra gente ter algum orgulho nessa vida
O maior ser humano vivo
Pedro Guerra
Record
258 pp.
Naquele pique de Meu ano de descanso e relaxamento (desequilíbrio mental, sociedade do cansaço e uma quantidade incalculável de drogas, ilícitas ou não), esse livro é uma irônica aventura contemporânea do homo sapiens paulistano. Ele se passa todo em um raio de poucos quarteirões do condado da Faria Lima e antes que você saia correndo devo dizer: tem sarcasmo e o sarcasmo nos salvará. Na primeira metade, o narrador é um advogado almofadinha hiperfocado no sucesso na carreira, e, meio que babaca gentil, cumpre as regras com garbo e precisão, a despeito do seu corpo que se desintegra em doses cavalares de café e drogas. Pinta o universo das coorporações com uma inteligência rara, e o seu imenso talento de construir as verossimilhanças nos dá agonias tão lancinantes quanto a úlcera que o protagonista cultiva com o esmero de um jardineiro. Bom, ele surta, como não poderia deixar de ser (e que cena!) e aí é um turning point. Depois do surto — ou, como se diz em português moderno, burn out — o livro dá uma guinada maravilhosa e o que era ironia vira sarcasmo. O sujeito alquebrado resolve faturar com seu trauma (acontece muito) e cria um standup que funciona como um culto a uma filosofia de vida chamada Medianismo, numa paradoxal exaltação à vida medíocre. É engraçado, é rápido, é sexy (tem poucos e sutis momentos, mas é) e é muito inteligente. E é também muito bem escrito, porque a linguagem acompanha os ritmos em que o narrador se move — rápida e meio neurótica nos surtos de produtividade, racional e allegro andante enquanto ele constrói essa espécie de religião para chamar de sua. Ainda que o narrador tenha um afastamento na medida, o que deixa tudo com cara de romance de formação do século 19 (seria Nilo meio que um Julien Sorel desgraçado da cabeça?), dá uma alegria ler um livro de hoje, para hoje, naqueles momentos em que a gente vê que mesmo um romance com um pressuposto maluco é, sim, um tratado sociológico. Literatura é bom demais.
Dois detaques: 1) o protagonista chama Nilo mas, se não me engano, o nome dele só aparece na segunda parte, depois do surto, como se o sujeito ali na corrida pelo sucesso não tivesse identidade, fosse só uma máscara farialimer 2) o único personagem que o acompanha nas duas partes é Reggie, um rico que sabe arrancar alegria do tédio. Os dois têm cenas memoráveis de fanfarronice desbragada que lembram o inesquevível Ega, de Os Maias (alá o século 19), personagem que talvez seja o maior monumento literário à amizade.
esse é bom mas tem melhor
Se você gostou desse que tá todo mundo lendo, vai nesse pra prolongar a onda
Falando de livros bons para ler andando por aí, não dá pra não falar de poesia, apesar de, mesmo grande leitora apaixonada de poemas, achar difícil demais falar de poesia — deixo isso para os críticos e para o Tarso de Melo, que é poeta, editor e a voz que a gente gosta de ouvir falando de poesia. Mas não deixemos em paz este grande sucesso editorial.
Esse livro da Rupi Kaur foi um estrondo. Lista de mais vendidos. Milhões de seguidores. Pixação em muro. E a glória: fazer um livro de poema estar nas paradas do sucesso, convencer as pessoas a lerem poesia, talvez, TALVEZ, incentivar o pessoal a olhar praquela estantezinha ali no fundo da livraria. Mas eu tenho uma má notícia pra vocês: aquilo ali mal é poesia. É mais prosa com enter mesmo. É tudo panfleto-feminista-lugar-comum com algum bom senso, claro, a incontestável bossa “não é não, meu corpo minhas regras”, tudo corretíssimo… e MUITO chato em poesia. Tudo é empilhado com uma facilidade gritante que não tem nada a ver com a esperteza, o mistério, o apuro com palavra e linguagem que a boa poesia tem que ser. Acham que eu tô exagerando? Vejamos:
calma eu pedi pra minha cabeça
essa sua mania de pensar demais
enche a gente de tristeza
(Michel Temer, é você?)
ou
se você for ficar esperando que os outros
te façam acreditar que você é o bastante
você vai ficar esperando
(além desse miserável “é o bastante”, olha o nível constrangedor de tautologia)
ou
há uma diferença entre
alguém dizer que
te ama e
de fato te amar
(faça o teste da revista Capricho e descubra se vale investir no boy!).
Mas nem tudo está perdido. A Angélica Freitas fez esse absurdo que é O útero é do tamanho de um punho, e só nesse título tem mais poesia que nas obras completas da Rupi Kaur. A Angélica é engraçada, porque olha pras coisas ora pelo avesso ora pela luz do óbvio. E ela sabe jogar com a linguagem botando o google, o lugar comum, os preconceitos mais obscenos e a alegria mais genuína pra brincar. Angélica está sempre ali, afiada e desafiante, para pregar um feminismo inventivo, revoltado, bravo e terno, diverso e divertido. E uma boa notícia pra quem já ama: acabou de sair uma plaquete pura cremosidade delícia, que junta poemas e desenhos, pelo Círculo de Poemas, este selo imprescindível que, se você gosta de poesia, precisa conhecer. É o Mostra Monstra, que desde que chegou aqui não saiu da bolsa, do bolso, da cabeceira.
Mas não é só isso! A gente tem a sorte de viver uma primavera de poetas boas, que pensam as questões da mulher com fúria e farra. Pra ficar nas daqui da minha cabeça: A deslumbrante Ana Martins Marques, precisa e afetuosa, ensina tanta coisa. A elegância ensaística da Marilia Garcia. A viagem fotográfica da Laura Liuzzi. A Luiza Romão que vê a Grécia antiga nas nossas entrelinhas. A história de amor doentinha delícia da Maria Isabel Iorio. A gentileza melancólica da Alice Sant’Anna. A porrada etnográfica que é a Bruna Mitrano. As narrativas fundamentais da Stephanie Borges. A ciência naturalista da Prisca Augustoni. A tristeza irônica da Flavia Santos. E tem mais, gente, é só olhar — porque poesia realmente está em toda parte (e, se eu der dois ou três enters, essa última frase é um poema da Rupi Kaur).
Outras formas de contar
O coração do dano
María Negroni
Tradução Paloma Vidal
Poente
136 pp.
Papeizinhos com frases soltas, trechos de uma carta, uma lista alheia pensada com pressa, linhas traçadas enquanto a gente enfrenta uma reunião online. Pistas, rabiscos, notas, receitas. Comecei est’A Lábia falando de um romance fragmentário e termino falando desse livro que é puro fragmento, todo feito de frases-inspirações, frase-sustos, às vezes versos, mas todos com a urgência do traço que sai da caneta quando a gente tá mais distraído. Pois a María Negroni, essa monumental escritora argentina, é uma mestra na invenção de jeitos de contar histórias, de acertar contas, de mandar cartas. Este O coração do dano (prosa-poesia-ensaio-carta) acompanha em caos e precisão a escrita de uma longa carta a uma mãe ausente (em tantos sentidos), enquanto traça o caminho de uma existência libertária que se impunha como imprescindível num mundo que via, aos poucos, tudo se fechar durante a ditadura argentina. Tá lá e é lindo: “A literatura é uma forma elegante de rancor”, e poucos livros são tão elegantes que esse. Ler esse livro é um passeio.
Servindo bem para servir sempre, botei links em todos os títulos dos livros de que eu falo aqui. Você jamais encontrará um link da Amazon: são todos caminhos para as editoras que fazem esses livros incríveis. Claro que você pode comprar na livraria mais perto da sua casa, compre livros de quem ama os livros, sempre. Se for comprar na Amazon, paciência, entendo, mas pelo menos faça isso com culpa. Pode ser uma militância nanica, mas é a minha militância.
Ana Lima, a que vê o que os outros não vêem. Realmente, o nome Nilo só aparece na segunda parte e por esse exato motivo. Obrigado demais pela leitura e pela divulgação! Que maravilha! Só vou parar de flutuar depois do carnaval, e olhe lá! Cheiro!
Essa newsletter vai me falir. Obrigado.