A Lábia 07______Diários
"Nunca viajo sem meu diário. É preciso ter sempre algo extraordinário para ler no trem"
A frase do Oscar Wilde, cabotina e exuberante como ele, guarda lá sua verdade — e o Wilde é isso, constrangedoramente verossímil. Eu tenho uma impressão de que tudo que é escrito — bilhete, nota, carta, conto, declaração de amor — pressupõe imediatamente um leitor. Mesmo os diários, esses depósitos de intimidades, pra mim sempre têm nas entrelinhas o desespero da vontade de serem lidos, seja no tom confessional da alcova, na vontade burocrática de organização ou no grito do desabafo.
E é tão convincente a atmosfera confessional que é bastante comum, por um lado, que os diários de grandes escritores tenham virado livros magníficos — Sylvia Plath, Kafka, Ricardo Pigla, Virginia Woolf (essa, uma gênia que fez mil teorias sobre os diários nos diários); e, por outro, que tantos escritores tenham usado esse recurso para forjar a intimidade, forçando a mão no subjetivo — Lima Barreto, no Cemitério dos vivos, Dostoiévski com seu subterrâneo, Graciliano no no estupendo Memórias do cárcere.
Recurso de estilo ou documento sincerão, o diário é fascinante por ser um dos caminhos mais curtos para chegar perto do outro. Mas se a memória é uma ilha de edição, o diário é o material bruto, sem cortes, versão do diretor. Eu já pensava nessas coisas até que li o lindo Triste cuíca, da Julia Wähmann, de que falo mais aí embaixo, cheio de reflexões preciosas sobre o poder de editar os diários, sobre o que a gente quer lembrar, sobre o que fica no papel de tudo que a cabeça tesourou, porque a memória, como se sabe, não se escreve em pedra (perdoem a metáfora tola, tava pensando em joquempô). Nos meus, que revisito quase nunca com curiosidade e constrangimento, tem grandes dramas por causa de um R. (Rodrigo? Ricardo? Rui?), enquanto me divertia com um C. (Caio? Camilo? César?), que fazia o possível para me fazer esquecer o primeiro (no que foi bem-sucedido, como se vê).
Mas por que a gente escreve diário? A fórmula infantil tão bobinha que já é meio irônica, “Querido Diário”, pressupõe esse leitor fantasioso que é, ao fim e ao cabo, você mesmo. Daí o Wilde achar, enfim, um livro à sua altura como leitor. No íntimo dessas páginas, a gente pode imaginar que alguém é tão sincero quanto é possível ser, porque ali estaria livre da polidez civilizatória da qual todos nos desfrutamos, o estado de todos contra todos é uma projeção perversa do Hobbes de que, se tivermos alguma sorte, estaremos livres. Como diz o Suassuna, bom é falar mal pelas costas, que esse negócio de ser sincero é falta de educação. No diário, não. O escriba consigo mesmo bota lá que tem medo, que não gosta, que mentiu, que é vil. É o contrário da vida nas redes sociais, e hoje a ironia é que cada perfil do instagram é um diário publicitário de si mesmo, com a maquiagem ilusória da vida virtual.
Pra terminar (não quero ser acusada, como já fui, de fazer dessa newsletter claramente de indicação de livros um indisfarçável veículo de crônicas: qualquer um que lesse meus diários sabe perfeitamente que não sou escritora), lembro dois momentos lindos. Primeiro, meu herói Kafka, quando mui discretamente celebra o desequilírio entre vida íntima e história da humanidade:
“2 de agosto de 1914: A Alemanha declarou guerra à Rússia. — À tarde, natação”.
E Tolstói, na ressaca fanfarrona (quem nunca?):
“Me apaixonei ou imagino que me apaixonei; fui a uma festa e perdi a cabeça. Comprei um cavalo do qual eu não tenho a menor necessidade.”
(Trecho que eu facilmente assinaria, caso fosse escritora.)
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cardápio da semana
o mais mais
Um preferido da semana, aquele que dá pra indicar para todo mundo
Caderno proibido
Alba de Céspede
Joana Angélica D’Ávila Melo
Companhia das Letras
288 pp
Para amantes saudosos de Ferrante, venham sem erro nesse diário de uma dona de casa nos anos 1950. Era o pós-guerra, em Roma, e tudo estava bem barra pesada: era difícil pão, carne, papel. Numa manobra sutilmente ilegal, Valeria consegue um caderno e começa a escrever — sobre a casa, o marido, os filhos, o tédio que ela sente e uma insatisfação indisfarçável, naquele sentimento meio clariceano que é praticamente universal na vida aborrecida das mulheres dos anos 1950. O caderno vira diário, e é bonito demais como aquela mulher vai se inventando, se entendendo, se transformando pelo simples ato de escrever, numa espécie de autoanálise que faz surgir desejo, medo, a sexualidade, a melancolia, a consciência absurda, terrível, mas também bonita e nova de ser mulher. Quando essa mulher nasce, tudo vai ficando besta: o marido tolo que só chama Valeria de “mamãe” (céus!), a filha que dá seus pulos para que a vida não seja igual à da mãe, o filho, mezzo bruto mezzo gentil, os olhares quentes do chefe, que só nao lhe parece tão tolo porque, ufa, não é o seu próprio marido. A metáfora é clara e linda: escrever, tornar-se escritora, ainda que de um diário secreto, faz a mulher nascer. E é tudo numa prosa chique, com algum mistério, um humorzinho ali muito de canto, mas que faz desse diário-fantasia um livro bonito demais.
passou batido
Uma pérola em que quase ninguém prestou atenção
Linea Nigra
Jazmina Barrera
tradução Silvia Maximini Félix
Moinhos
144 pp
Quando a Jazmina descobriu que estava grávida, espantada com o absurdo que é fazer crescer uma pessoa dentro da sua barriga, ela fez o óbvio para uma ensaísta brilhante, erudita, espantada com a vida como ela: começou um diário. Nas notas que vão preenchendo o livrinho, tem o susto de sentir o bebê mexer, a relação linda com o pai da criança (que vem a ser o Alejandro Zambra, mas isso é só um detalhe), a mãe, que adoece como um memento mori de que nem tudo nessa vida é vida, todo um processo em torno de terremoto (sim) e aqueles dias que formam os oito meses e uma eternidade que é uma gravidez. Aliás, linea nigra, assim em latim, é o nome daquela linha que aparece na barriga das grávidas, espécie de linha do equador vertical, que divide tantas coisas, mas principalmente a vida antes e depois da gestação. O diário da Jazmina não olha só para o presente, mas para a História, buscando com uma erudição meio impressionante e nada pedante, o que nós, enquanto humanidade, escrevemos sobre gravidez, puerpério, aleitamento, menstruação. E descobre que a resposta é: nada. Ou quase nada. Ou infinitamente pouco para o registro do processo animal mais louco de todos, que é produzir outro animal. É um tanto óbvio, ainda que revoltante: se eram os homens que escreviam, pintavam, registravam, essa partezinha do processo fica de fora. Mas se o processo é lento, o bagulho é louco, e o que a Jazmina faz aqui é botar um tijolinho do imenso muro da reparação histórica que a gente tem que construir. A parte dela é bem brilhante.
são nossas coisas
Um brasileiro realmente bom, pra gente ter algum orgulho nessa vida
Triste cuíca
Julia Wähmann
Janela + MapaLab
112 pp
Eu estava guardando pra falar da Julia Wähmann quando se fizesse necessário evocar livros engraçados, porque o Manual da demissão dela é um espetáculo de livrinho hilário, inteligente, com aquele humor depreciativo de que a gente gosta. Mas aí chegou esse Triste cuíca bem quando eu tava com os diários na mira, e não tem jeito, o Manual vai ter que esperar. Triste cuíca é um diário da pandemia e é muito louco ler sobre essa época que foi anteontem e que, como diria o Nelson Rodrigues, parece mais antiga que o primeiro espartilho da Sarah Bernhardt, mais remoto que a Gripe Espanhola. Palavras-chave para cutucar a triste memória: lavar pacotes de macarrão, não tocar no jornal impresso, álcool em gel e escassez de máscaras cirúrgicas, reunião por zoom, cerveja por zoom, dança por zoom, medo da morte, previsões apocalípticas, solidão involuntária brabíssima. Claro que você lembra, todos lembramos desse trauma coletivo, mas a Julia, ao falar do cotidiano da pandemia, pensa sobre o que é editar os próprios diários e sobretudo faz uma reflexão muito bonita (cheia de Virginia Woolf e Annie Ernaux e Svetlana Aleksiévitch) sobre o que é editar a memória da gente. Ela faz outras coisas também, claro — pinta a infância nos anos 1980, constrói uma personagem muito honesta consigo mesma (e, sim, chega muito perto do leitor) e se declara aos amigos que seguram a barra insuportável que foram aqueles anos. Como em Manual da demissão, aqui tem humor também, imagino que o humor esteja enterrado na Julia como um sapo de macumba (desculpem, destampei o baú das expressões do Nelson Rodrigues, agora é difícil parar), mas aqui o humor é mais doce, fala mais baixo, como se não quisesse incomodar os vizinhos. Eu vou lembrar sempre desse livro quando pensar nessa que foi certamente a pior época da minha vida (história triste, amigos). E que bom que tem um livro tão bonito onde encostar.
esse é bom mas tem melhor
Se você gostou desse que tá todo mundo lendo, vai nesse pra prolongar a onda
Diário: memórias da vida literária
Hoje deu vontade de falar de fofoca. Sim, fofoca. Eu sou adepta disso que os dicionários definem como ato de falar mal de alguém, sem que essa pessoa esteja presente, e com o intuito de causar intrigas. Mas não é só isso, o google dá outras definições: “comentário que não se baseia em fatos concretos; divulgação de fatos da vida de outras pessoas sem o consentimento delas; revelação de informações de forma maldosa, com o intuito de expor alguém e fazer chacota pelas costas etc”. Isso te lembra alguma coisa? Pois é: literatura. Tentei mais de uma vez emplacar o slogan “Literatura é fofoca”, mas acharam agressivo, sabe-se lá. Fica aí, pra quem quiser usar. Essa introdução mexeriqueira pra dizer que eu sei bem que todo mundo gosta de fofoca e, ainda que um ou outro orgulhoso diga “eu não!”, muito pouca gente resiste a um “preciso te contar uma coisa”. Que há vários tipos de fofoqueiro é uma verdade inquestionável. Tem o que usa só pra consumo próprio, tem o rádio-difusor e tem o mais pernicioso, que é o que vem com o julgamento acoplado. Fofoqueiro moralista é o pior tipo de fofoqueiro. E desses, o inferno está cheio. Mas tem o fofoqueiro-moleque, o fofoqueiro-arte, que é o visionário que entende que a fofoca é, além de literatura, sociologia, antropologia, um documento imprescindível para compreender os tempos, por mais confusos que sejam. E aí chegamos no deleite absoluto que são esses diários dos irmãos Goncourt.
Durante quase quarenta anos na segunda metade do século 19, os dois irmãos Goncourt, Edmond e Jules, inseparáveis de um jeito meio doentio, aproveitavam o conforto de uma aristocracia herdada e se fizeram o epicentro de um salão animadérrimo de convívio literário e artístico. Pelas mesas em que eles promoviam uns jantares fervidos, passaram todos os grandes escritores da época, de Victor Hugo a Flaubert, dos Dumas, pai e filho, a um fugidio Baudelaire. Eles tinham notícia de Oscar Wilde e Maupassant, admiravam Rodin e Degas, e chegaram a receber o russo Turguêniev. Enfim, elenco de peso. Da convivência babadeira, surgiu o prêmio de maior prestígio da França, que nunca deixou ninguém rico, mas até hoje, 2025, é um atestado de qualidade literária que, até onde eu sei, nunca errou. Além de produtores dessa eterna festa, os dois escreviam umas peças bastante medíocres e uns romances históricos que, ao contrário do prêmio, não sobreviveram. E com essa peculiaridade de assinarem tudo em dupla, peças, romances, artigos no jornal, poemas e até os diários, foram construindo uma obra imaterial, mas muito real, que é essa da convivência. Nos diários, obviamente com pretensões a serem lidos, que assinaram juntos até a morte de Jules (e que Edmond seguiu até o fim da vida), eles narram, além da animação dos encontros, as impressões sobre as obras alheias, maldades cotidianas, língua ferina. A gente vai lendo e descobrindo a inveja, o veneno. Aí entra a nossa diversão, porque ver essa pompa do século 19 pelos olhos contemporâneos tem, primeiro, uma proximidade que a gente não espera ter com um Zola, com um Flaubert. E depois, porque pelos olhos da inveja, da maldade, a gente vai vendo que esses ídolos transseculares são humanos — mesquinhos, glutões, safados, hiperfocados, vaidosos e às vezes de gênio banal. Não dá nem pra começar a citar os melhores momentos, que são muitos, procurem saber. Mas foi pelos diários que eles deixaram um retrato vivo, divertido e humano daquele tempo. Que sorte a nossa (talvez azar para seus contemporânos) que o século 19 teve esses dois como retratistas.
Diários do lado de fora
Quero estar acordado quando eu morrer
Atef Abu Saif
Tradução Gisele Eberspächer
Elefante
340 pp.
Atef Abu Saif é um escritor com alguns romances publicados, e chegou a ser ministro da Cultura da Autoridade Nacional Palestina. Ele estava em Gaza, a trabalho, quando grupos da resistência armada palestina realizaram uma série de ataques ao território israelense, que foram, como se sabe, respondidos pela brutalidade sem precedentes de Israel. É de lá, de Gaza incessantemente bombardeada, que Saif escreve um diário durante quase três meses, enquanto via a cidade ser destruída ao lado de seu filho, parentes e outros 2 milhões de compatriotas. É um documento assustador do horror do mundo em que ele conta, dia após dia, a rotina do medo, da incompreensão, da violência. Entrar nesses diários nos humaniza a todos, porque faz sentir a guerra para além da frieza dos números. São pessoas, famílias, comércios, toda a vida de uma cidade que, de um minuto para outro, deixa de ser. Esse diário do genocídio, no calor da hora, une as pontas da vida íntima com o martírio coletivo, e, se não há humanização possível em meio aos bombardeios, atesta o caminho terrível e doloroso que a guerra impõe à vida das pessoas — e são dramaticamente impactantes as passagens em que ele aprende a ouvir o som das bombas, o silêncio pré-ataques, o clima de medo, os terríveis presságios. É muito duro, mas é o mundo. E literatura também serve pra isso.
Para não dizer que não falamos da outra guerra, chegou há pouco o Ucrânia: diário de uma guerra, do Andrei Kurkov (Carambaia, tradução Marcia Vinha e Renato Marques), que conta da outra guerra. Muito maluco ver as semelhanças, apesar de ser uma cultura tão diferente. Mas lendo os dois diários a gente entende que, pra quem está sob o bombardeio, nada mais igual do que o medo do fim do mundo.
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Ainda uma nota sobre diários:
Tenho passeado muito no substack, e vendo meio maravilhada o uso que as pessoas têm feito desse espaço. Não sei se dá para generalizar, aqui tem texto de todo tipo. Mas tem vários que têm cara de diário, cheiro de diário, rabo de diário. Muito bom estar tão perto de tanta gente.
Servindo bem para servir sempre, botei links em todos os títulos dos livros de que eu falo aqui. Você jamais encontrará um link da Amazon: são todos caminhos para as editoras que fazem esses livros incríveis. Claro que você pode comprar na livraria mais perto da sua casa, compre livros de quem ama os livros, sempre. Se for comprar na Amazon, paciência, entendo, mas pelo menos faça isso com culpa. Pode ser uma militância nanica, mas é a minha militância.
Ontem, a extrema-direita teve uma votação histórica na Alemanha. Pela manhã, fiz uma feijoada.
Eu venho mais pelas crônicas sabia? As indicações são ótimas, claro... Mas essa crônica que vem por cima é a azeitona do dry martini :)