Ainda no pique carnavalesco (mentira, em 2025 este corpo não vislumbrou sequer o brilho fugidio de uma purpurina), fiquei aqui juntando uns livros mais engraçadinhos, desses que a gente lê com riso no canto da boca, porque estar em São Paulo neste calor saariano de geleiras derretendo já é triste o suficiente. Não que livro resolva o calor, mas pensei em alguns que dessem um refresco, e nisso furei minha própria fila, porque tinha pensado já há algum tempo em um’A Lábia sobre humor, mas não é é essa ainda. Essa, como vocês podem ver, é sobre deboche.
Deboche, escárnio, zombaria, sarcasmo, cinismo, ironia. Todas essas palavras têm pinta de sinônimos, mas se a gente aperta um pouco vai ver que cada uma afia a língua de um jeito diferente. Deboche não tem respeito nenhum pelo objeto debochado; escárnio traz junto uma crueldade; zombaria tem um quê circense; sarcasmo denota uma superioridadezinha de quem o pratica e ironia, ah, vou roubar essa do João do Rio, “a ironia é o lirismo da desilusão”.
Todas as minhas impressões sobre essas palavras são, desculpa a tautologia, impressões. Eu sou antiga adepta da etimologia selvagem e, com todo respeito à essa arte arqueológica da palavra, acho que uma etimologia falsa pode talvez não explicar tanto quanto uma verdeira, mas dá charme na conversa, e às vezes um pouco de charme é tudo. A ironia, me diz uma busca irresponsável no google, vem do grego euroneia e significa algo como dissimular, fingir. Aquela arte de dizer o contrário, apostando no avesso para dizer o direito, mas botando nessa curva a graça, a troça, o sarro.
Não dá pra falar de ironia sem falar do Machado, o maior que nós temos, que soube manejar o sarcasmo tão bem que, desconfio, seus contemporâneos nem entendiam direito — e é por isso que botei ali em cima a definição do bruxo. Eu tenho alguma convicção de que só um país debochado como o Brasil poderia tão graciosamente percorrer o caminho da ironia machadiana e acabar protagonista da era de ouro dos memes. O brasileiro é, antes de tudo, um cínico. “A ironia é o lirismo da desilusão” — e volto à frase do João do Rio, tão lapidar que está lá na lápide do João do Rio (oi, etimologia). Ele foi useiro e vezeiro da ironia, como figura de linguagem, instrumento de comunicação e marca de estilo, e pra isso bebeu muito das águas de Oscar Wilde, de quem ele foi o grande divulgador e tradutor no Brasil.
A ironia, escreveu em pedra nosso João do Rio, não é só engraçada. Vem com ela ali de cambulhada essa desilusão com vida, que é o que faz do irônico um potencial cínico. E o cinismo tem o bode maior de ser meio misantropo, orgulhoso de um mau humor anti-humanidade, arma que se usa na distância segura do combate, sem ter que sentir o cheiro do cangote do inimigo. Quem há de negar que o cinismo é, além de arma, também armadura, e é um jeito razoavelmente elegante de nos manter a salvo? Quer ver? Governo de ultradireita? Deboche. Mês que sobra no fim do dinheiro? Zombaria. Coração partido? Nada que um sarcasmo não conforte. Aquecimento global? Mete um cinismo. O cinismo é autodefesa e, cada vez mais azeitados nessa arte, saímos de um país que viveu na pele a trágica derrocada da Copa de 1950 para um que samba, moleque, estralando seu leque de memes na derrota do 7x1. E quando a gente percebe isso, não consegue mais olhar a ironia sem esse irmão siamês dele que é a melancolia — e que o João do Rio chamou lindamente de “lirismo”.
Portanto, aí vão uns livrinhos lindos, sem ironia nenhuma. Porque são debochados, irônicos, divertidos, mas falam da vida no que ela tem de frágil, ou de ridículo, ou de humano. A gente dá umas sofridinhas, mas dá pra se divertir no caminho.
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Pra terminar, vou cometer a insensatez de deixar um diálogo à guisa de velha piada:
— Esse sarcasmo não vai te levar a lugar nenhum.
— Na verdade, já me levou ao Festival Mundial de Sarcasmo, em Budapeste.
— Sério??
— Não.
Pois é.
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cardápio da semana
o mais mais
Um preferido da semana, aquele que dá pra indicar para todo mundo
Dias lentos, encontros fugazes
Eve Babitz
Tradução de Cecilia Madonna Young
Record/ Amarcord
240 pp
Tem uns livros de que dá pra gente falar sem dizer nem se o autor é homem ou mulher, porque isso no fundo não importa. Mas tem outros de que é impossível dar uma ideia sem falar do autor, ou até botá-lo na capa, como é o caso dessas memórias algo inventadas (mentiras sinceras?) da Eve Babitz, um desses milagres que nascem de vez em quando e que são capazes de personificar com graça, inteligência e mandinga o tempo de onde ela vem. Artista e escritora, ela era a própria arte — quando aparecem personagens como essa, sempre me vem à cabeça o verso do Chico Buarque “catando a poesia que entornas no chão”. Muito mais preocupada em viver profundamente e produzir alegria dos perrengues do que propriamente de construir uma obra, deixou em cada linha de cada conto a marca indisfarçável da diversão: soube rir dos foras que deu e levou, dos amantes que conquistou, dos artistas que testemunhou, das ruas em que se perdeu, dos porres que protagonizou. Nos dez contos deste livro, que tem um subtítulo que é uma isca (“O mundo, a carne e Los Angeles”), a gente conhece e fica íntimo de uma mulher linda, inteligente e engraçada, deliciosamente sexy (e como seria diferente, com todos esse atributos?), capaz de arrancar risadas das piores presepadas (e que delícia é ela rindo de si mesma). É tudo sobre ela, mas é um jeito de olhar o mundo, cínico e sensual, e com uma sabedoria profunda do que ela está fazendo. Se parecer que eu estou meio apaixonada é porque estou mesmo, porque além das aventuras, ela é uma frasista de primeira, com uma escrita chique, dessas que vão dando frases pra gente colecionar (o meu exemplar tá cheio de páginas dobradas). A Babitz escreve como um solo de jazz, charmoso, sensual, melódico e profundamente sincero. E entender ainda o que há de revolucionário (e feminista e vanguardista) numa mulher que exerce com coragem e deleite seu direito inalienável ao próprio desejo é uma explosão literária que eu não sou nem louca de fazer passar despercebida.
Ainda uma curiosidade: aqui você pode ver a Babitz jogando xadrez pelada com o Marcel Duchamp, nessa foto classuda e clássica. Essa é só uma das aventuras inacreditáveis dela numa Los Angeles bizarramente animada, em que ela conviveu com Janis Joplin e Stravinski, mais um monte de gente fundamental para esse imaginário hollywoodiano tão caro pro mundo inteiro, nas décadas seguintes. Puro ouro esse livrinho, com uma tradução esperta que faz jus.
passou batido
Uma pérola em que quase ninguém prestou atenção
Outra novelinha russa
Gonzalo Maier
tradução Reginaldo Pujol Filho
Dublinense
96 pp
Emanuel Moraga é provavelmente um dos sujeitos mais desprovidos de charme da América Latina. Aposentado e recém viúvo, toca a vida com melancolia, tédio e saudade da mulher e se aferra com afinco a uma das poucas alegrias da vida: jogar xadrez (acho que foi o Millôr que disse que jogar xadrez aumenta extraordinariamente a nossa capacidade de jogar xadrez). Teimoso como um velho aposentado pode ser, resolve realizar o sonho de ir à União Soviética jogar com os maiores enxadristas do mundo, numa jornada de idiossincrasia e, vá lá, descoberta. Eu amo o título desse livro, porque o autor é chileno. Eu amo o cenário, que é um rescaldo de Guerra Fria rebatida aqui na América Latina. Eu amo um livro cujo herói é um sujeito com problemas de colesterol. E eu amo a ironia de fazer um pastiche com cara de fábula de um livro meio de despedida, como é o A morte de Ivan Ilitch, mas aqui com tanto humor e um debochezinho lírico. E ele ainda é um suspiro, que você devora em qualquer hora de descanso, mas vale demais o passeio.
são nossas coisas
Um brasileiro realmente bom, pra gente ter algum orgulho nessa vida
Amor
André SantAnna
Madame Psicose
88 pp
Amor é um livro de que é até difícil falar, e a vontade que dá é de só deixar aqui um trecho pra vocês terem uma vaga ideia do que é este acontecimento. Quando a gente encontra um livro absurdo assim, tem mais é que exaltar, e chamar de clássico, e ficar entre a perplexidade e a alegria genuína de dar de cara com a literatura. Publicado no fim dos anos 1990, circulava até hoje como uma droga rara entre uma pequena seita, até que a editora novíssima Madame Psicose fez o favor de reeditar e, ainda mais, de promover o lançamento num bar suspeito em Pinheiros, para o qual eu fui convictamente arrastada. Quando cheguei lá, o André, que é músico, publicitário, roteirista e sei lá mais o quê, estava no palco lendo trechos dos quais eu nunca mais pude desatracar. É um poema épico, uma joia da ironia, e é de chorar de rir, debochado com maldade, e evoca uma improvável ingenuidade que enfeita o desencanto de um jeito polido e bagaceiro ao mesmo tempo. E tudo num mantra que é um oceano de substantivos surpreendentes e adjetivos abjetos. Parece improvável, né? É porque é mesmo.
Pra machucar o coração
Cadelas de aluguel
Dahlia de la Cerda
tradução Marina Waquil
DBA
176 pp
Atravessei os dois primeiros contos dos treze que fazem esse livro com alguma dificuldade. O primeiro porque é o relato mais cru que já li de um aborto — dói mais que o que a Annie Ernaux conta em O acontecimento, ou que aquele entre terno e triste que a Lucia Berlin narra em Manual da faxineira, ou ainda que o sangrento e necessário em As meninas, da Lygia. E não sei bem dizer por que. Talvez porque a narradora não faça nenhuma concessão, e tenta ela mesma ser perdoada daquele horror que faz consigo mesma pela consciência brutal da própria precariedade. O segundo conto foi arrastado porque achei ótima a ideia, mas não gostei do texto, nem do tempo. Achei escrito em solavancos, e fiquei com o dedo coçando pra editar aquilo, resolver a cronologia. E os contos ainda são encharcados dessa ironia doída, dessas que a gente vai vendo e não acha a muita graça porque, caramba, quem é que vai achar graça numa coisa dessas. Mas aí um amigo insistiu e fui lendo e entendendo o sistema dela. Cada conto é sobre um tipo de mulher e os diversos abusos a que são submetidas. E eles todos juntos vão desenhando um sistema de crueldade e violência até culminar num dos relatos mais dolorosos sobre o feminicídio que eu já li, porque narra lá de dentro do sistema, com a voz de quem conhece o horror. Tudo isso numa chave profundamente latinoamericana, nessas mãos estendidas que a literatura dá. Dói, mas que bom que estamos lendo e escrevendo essas mulheres.
Surra de ironia
Correio literário — ou como se tornar (ou não) um escritor
Wisława Szymborska
Tradução Eneida Favre
Âyiné
102 pp
Seção do jornal Vida Literária, o Correio é um saborosíssimo exercício de ironia, em que a gênia absoluta que é a poeta polonesa Wisława Szymborska respondia às cartas dos leitores no melhor estilo consultório sentimental, só que aqui o consultório era literário mesmo. Os leitores, que se dividem entre os descaradamente sérios e os debochadamente irônicos, escrevem a ela pedindo dicas e querendo mostrar suas inestimáveis obras, e vão tomando lambada após lambada na cabeça dessa senhorinha fumante, sacana, brilhante, que, ouso dizer, devia se divertir demais com isso. Se o objetivo final era desviar dos golpes cheios de esperança em que escritores novatos ou não se aventuram, ela usa isso pra brilhar em sarcasmo, e fazer, nas entrelinhas desses belíssimos nãos, reflexões elásticas e deleitosas sobre o que é o fazer literário. Wisława morde e assopra, e colabora pra esse estilo que, devo dizer, é um pouco o meu sonho: ficar respondendo dúvidas e cartinhas ansiosas, tentando fazer da literatura um tarô, uma tara, uma dica, um mapa. Wisława é craque demais.
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Me despeço com essa dica do meu desejo até agora inconfesso. Vai que você se anima a mandar uma cartinha e eu animo a botar uma sessão aqui. Ou, claro, se dá errado, sempre dá pra fugir pro recurso “imagina, eu só tava brincando” — o que é uma artimanha um pouco tola do cinismo, mas que resolve com alguma graça tanto um constrangimento leve como uma história de amor que chega ao fim. De todo modo, não esqueçam, temos nosso encontro marcado no Festival do Sarcasmo de Budapeste.
Servindo bem para servir sempre, botei links em todos os títulos dos livros de que eu falo aqui. Você jamais encontrará um link da Amazon: são todos caminhos para as editoras que fazem esses livros incríveis. Claro que você pode comprar na livraria mais perto da sua casa, compre livros de quem ama os livros, sempre. Se for comprar na Amazon, paciência, entendo, mas pelo menos faça isso com culpa. Pode ser uma militância nanica, mas é a minha militância.
todo policial tem passagem pela polícia, escrevia um amigo no banheiro da escola militar.
Não há poupança literária que dê conta dessa Lábia!!!! ❤️