“A ironia é um embate com a vida. Humor tem fantasia, é muito superior. Humor tem liberdade.” Foi assim que o gigante poeta Chico Alvim defendeu a grandeza do humor frente ao amargor do sarcasmo no Poesia no Centro, festival de poesia que aconteceu aqui em São Paulo no último fim de semana — e, se digo adjetivos tão superlativos, é muito propriamente: o Chico tem quase dois metros de altura, um sorriso belíssimo e, aos 87 anos, um quê de um Marlon Brando bondoso. A sinceridade folgazã do Chico é um ato de resistência nessa civilização cínica que nos coube, e a sua bondade por eleição (porque não falta malícia) foi um prêmio para minhas retinas tão fatigadas.
Ser irônico é relativamente fácil, pra quem vê a vida a ferro e fogo. Falar as coisas ao contrário, torcer as palavras até que elas machuquem, não digo que está ao alcance de todo mundo, mas pra quem nasceu sob os auspícios de Machado já é meio caminho andado. Em um’A Lábia anterior, sobre deboche, eu falei do humor irônico, e tentei lá alguma distinção sobre sarcasmo, ironia, e demais mecanismos safados de defesa da vida dura. Safados, digo agora, porque é lá um tanto covarde isso de rir desfazendo dos outros, tirar sarro é também um jeito de se safar. É engraçado? É, claro. Mas não é o humor de que o Chico Alvim falou, humor bondoso, macio, humano. Humor que reconhece um estado geral de estupefação frente a vida, e escolhe rir dando um olé moleque no mundo. Esse humor pressupõe uma inteligência, uma imensa capacidade de driblar milagrosamente suas próprias convicções, como um Messi de si mesmo, enxergando que o deslumbre do passe vale mais do que o objetivo do gol.
Dar risada é o que faz a gente humano. Quando meu filho nasceu, os primeiros dias com aquele bichinho eram de espanto e incompreensão. Eu olhava pra ele e pensava quando é que a gente se conhece de verdade. Eu nunca vou esquecer do dia em que ele deu a primeira risada, risada de palhaçada, risada de achar engraçado. Lembro do som da risada, da covinha, daquela fofura quase doída de bebê bonito. Acho que desde então a vida é perseguir de novo a alegria daquela risada. E, nesses lances loucos que a vida devolve, a maior declaração de amor que ele me fez foi, quinze anos depois, ouvir dele quando causou um ataque de riso, nós dois ainda com os olhos molhados, “das coisas de que eu mais gosto é de te fazer rir”.
A risada humaniza, porque eu consigo imaginar num macaco pensando, um gato julgando, um boi apaixonado, mas eu não consigo ver bicho nenhum gargalhando. Rir é um descanso pro muito pensar, é a brincadeira da inteligência, e é o motor e objetivo dos nossos melhores momentos.
Em outra mesa do festival de poesia, três amigos no palco. Os poetas Fabrício Corsaletti e Ana Martins Marques, mediados pelo Fernando Luna, deram um espetáculo de conversa boa sobre as poesias deles. Eles leram, falaram sobre os rastros da leitura nos poemas, sobre a aventura ética que é encontrar a sua forma, sobre o momento que a a gente entende que a poesia se impõe. Além de tudo que foi lindo, a mesa foi engraçada, reveladora, e cheia desse humor de que o Chico Alvim falou. É claro que existem excelentes poetas que são péssimas pessoas, mas os poemas do Fabrício e da Ana só são possíveis porque eles são boas pessoas, porque encaram o mundo com essa espécie de olhos para a beleza, porque seu susto renovado com o que tem de lindo guia a escuridão dos dias horríveis.
Se como ensinou um dos mais hilários pensadores deste país, o Oswald de Andrade, “a alegria é a prova dos nove” (o Oswald era um engraçado nato que talvez não fosse lá a melhor pessoa do mundo, mas era engraçado e inteligente, e eu tenho alta tolerância para quem conjuga esse coquetel na sua personalidade), que a gente bote a risada no lugar que ela merece, estrela da vida inteira, guia do nosso mapa e testemunha de nós mesmos nos nossos melhores momentos.
P.S. Apesar de se chamar Humor, e não Poesia, dedico ess’A Lábia para as mulheres incríveis que botaram de pé o Festival Poesia no Centro: Irene, Fernanda, Rita, Nani, Ciça, Flávia, Nina, Bruna e a turma toda. Com alegria e um humor cheio de bondade elas fizeram aquele pedacinho no centro de São Paulo ser um pouco a cidade que a gente quer — e desta edição um mar de fofurices encantadas para o qual eu acho que nem eu mesma estava preparada.
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cardápio da semana
o mais mais
Um preferido da semana, aquele que dá pra indicar para todo mundo
Coisa que não edifica nem destrói, Ricardo Araújo Pereira
Tinta da China, 240 pp
“Coisa que não edifica nem destrói, não inflama nem regela, e é todavia mais do que passatempo e menos do que apostolado.” A frase do Machado de Assis está no início de Memórias póstumas de Brás Cubas e serve como uma espécie de preâmbulo e aviso. Mas a gente já aprendeu que nunca se deve confiar totalmente no Machado. O português Ricardo Araújo Pereira é um gênio que combina ser filósofo e humorista, um erudito fanfarrão, um leitor palhaço, um ator cronista. Este livro é a transcrição dos ensaios de abertura do podcast brilhante que ele faz — cada episódio tem um ensaio de abertura, seguido de uma entrevista quase sempre tão interessante quanto. O livro é muitíssimo bem escrito e bem editado e foi uma delícia ler os textos que eu já tinha ouvido agora sem a barreira da língua, se é que me entendem. Ali tem história, filosofia, literatura, Shakespeare, teatro, psicanálise, tudo convocado com graça e piadas e histórias, amarrados em ensaios cristalinos. A cada capítulo, ele trata de um tema (timing, escatologia, políticos, sob títulos como “Sobre bater em humoristas”, “Sobre uma coisa importantíssima que ninguém sabe o que é”, “Sobre rir de tudo e rir de nada” etc.) com a dedicação dos pesquisadores mais sisudos, mas numa malemolência irresistível. Coisa mais generosa em literatura é quando o autor derrama um conhecimento desse com tamanha generosidade e, sim, bondade, porque aprendemos ali que falar sobre humor é também uma postura ética no mundo, ataque e defesa, um jeito de reafirmar que, ainda que tudo seja seríissimo, rir não significa “levar a vida com mais leveza”, rir também é porrada, e às vezes do que a gente precisa é de porrada mesmo.
passou batido
Uma pérola em que quase ninguém prestou atenção
Eu falar bonito um dia, David Sedaris
Tradução Sergio Flaksman
Companhia das Letras/ 248 pp
Um dia, numa Flip imemorial, acho que 2008, eu estava de pé ao lado do telão, conversando com uma amiga em frente à tenda, enquanto rolava uma das mesas. De repente, a gente começou a ouvir risadas que iam ficando cada vez mais altas, até a praça toda virar uma gargalhada. Foi assim que eu conheci o David Sedaris. Depois de reforçar a gargalhada geral, entrei na livraria e comprei os dois livros que existiam então, e que inexplicavelmente não viraram best-sellers. O Sedaris é um americano de família grega, e tem aquele humor de família grande, uma relação malvadinha com as irmãs, uma paixão em luta acirrada com os pais. Bizarramente inteligente, sabe rir de si mesmo com passes de craque e é dos poucos autores que me fazem rir de tirar o fôlego e dar vexame em público. Sempre se pondo no centro das suas histórias, junta crônicas sobre um mesmo assunto em livros solares e afetuosos (a sua aventura de parar de fumar em Engolido pelas labaredas, a infância tragicômica em De veludo cotelê e jeans). Neste, ele e o marido francês compram uma pequena casa no campo na França e a aventura é 1) de aprender minimamente a se virar na língua 2) o processo de reforma da casa, demonstrando toda sua inabilidade. Nessa primeira parte, a tradução fenomenal do queridíssimo e saudoso Sérgio Flaksman é uma engenharia à parte, de onde veio o título curioso. Recomendo todos, e o link é da Estante Virtual, porque desgraçadamente estão todos fora de catálogo — ironia de que o Sedaris saberia extrair as melhores piadas. Sedaris é engraçado e ao mesmo tempo comovente, comentador finíssimo das agruras e dos absurdos da vida contemporânea.
são nossas coisas
Um brasileiro realmente bom, pra gente ter algum orgulho nessa vida
Manual da demissão, Julia Wähmann
Record, 120 pp.
Já falei da Julia em outr’A Lábia, e vocês leiam os livros dela e me digam se não justifica ser fã. Se lá falei do Triste cuíca, um livro que ensina surpreendentemente que a gente pode falar com humor sobre um período tão desgraçadamente miserável como a pandemia (e ainda sobre diários, amigos e demais temas relevantes), este aqui começa com a demissão da narradora de um confortável emprego de editora de livros, a que ela se dedicava com a paixão dos leitores que alcançam a alegria que é viver de editar livros (digo por experiência própria). A narradora é vítima do famigerado passaralho, aliado a uma crise econômica e a certo mau-caratismo do patrão, mas faz dos limões a sua saborosa limonada, e entrega um livro engraçado e autoirônico entre filas do auxílio desemprego e engenhosas artimanhas para matar o tempo, como organizar o material retirado da empresa (aquela deprimente e cinematográfica caixa de papelão com objetos pessoais), dela e dos amigos, entre idas vespertinas à praia e uma aventura decadente de cervejas artesanais a quase litrões, enquanto assiste inerte e algo curiosa ao estranho êxodo dos amigos rumo a Portugal. Julia é uma narradora gentil e amiga e a sua autocomplacência é um pouco a nossa. Me diverti horrores, mas com todo respeito.
um excelente livro estranho
Livro híbrido já é uma maravilha, aquela descoberta de um texto que a gente não sabe se é ensaio, poema, manual, almanaque. E foi esse formato de kit que a Patrícia Lino escolheu para fazer um apanhado bem-humorado, sagaz, levemente enganador, mas cheio de excelentes sacadas para pensar o colonialismo e o que ela chama de “portugalidade” — o que faz todo sentido, porque a Patrícia é portuguesa e tem um trânsito cheio de propriedade no Brasil. Arauto do ridículo que é o colonialismo, parte dos menores objetos para ir criando um quadro constrangedor de desejo de dominação, que sempre esbarra na literalidade, na inutilidade e no vazio, e muitas vezes o ridículo é o melhor jeito de fincar o pé numa relação que já é, por base, meio intransponível mesmo. A língua, os costumes, os orgulhos nacionais, as patéticas personagens, tudo vai se elencando num “kit”, que também parece a regra de um jogo que a gente nunca aprendeu muito a jogar, mas de que somos todos, de um e de outro lado, craques incontestes. Livro pra ficar por perto, até a gente aprender que essa lição não se aprende — mas que pelo menos dá pra se divertir com ela.
Difícil explicar como funciona este livro que explica como as coisas funcionam. Pois vai então uma imagem que vale mais que mil palavras etc.
O humor está no ar
Se você leu pelo menos algumas Lábias passadas, já percebeu que eu tenho descaradamente um apreço pelo humor. Gosto demais de livro que tem humor — aliás, de gente que tem humor, de comida, lugar, bicho, história, filme, música, política, trabalho, arte, desenho, pensamento, tudo com humor é melhor. Por isso já falei de belíssimos livros engraçados e afetuosos aqui. Tipo: Querido babaca, da Virginie Despentes, um romance epistolar muitíssimo contemporâneo e engenhoso; O amigo, da Sigrid Nunez, que é ao mesmo tempo comovente e divertido; O delicioso O maior ser humano vivo, do Pedro Guerra, tragicamente hilário sobre a doencinha onipresente da sociedade contemporânea; Dias lentos, encontros fugazes, da gênia Eve Babitz, uma maravilha de livro que faz a gente cair de amor pela narradora; Amor, do André Sant’Anna, que serve humor pra ser servido com garfo e faca; Nosso corpo estranho, do Reginaldo Pujol Filho, mirabolante e espertíssimo, que me arranca risadas até hoje; e a divina Rosa Montero, em quase todos os livros, parece ser uma pessoa que sem humor nem levanta da cama e etc, etc. Gente, é só olhar, o humor está em quase toda parte.
Servindo bem para servir sempre, botei links em todos os títulos dos livros de que eu falo aqui. Você jamais encontrará um link da Amazon: são todos caminhos para as editoras que fazem esses livros incríveis. Claro que você pode comprar na livraria mais perto da sua casa, compre livros de quem ama os livros, sempre. Se for comprar na Amazon, paciência, entendo, mas pelo menos faça isso com culpa. Pode ser uma militância nanica, mas é a minha militância.
Quando vi que era sobre humor pensei “diacho, eu ja apareci noutr’A Lábia, queria ter aparecido nessa!” E não é que apareci! Isso aí LUXO! E generosidade! Valeu, Cecilio! (Sim, vou atras do Sedaris e de um emprego noturno para dar conta dos gastos)
Tá aristotélica ela, "o ser humano é o único animal que ri."