Muitos anos depois, a leitora que vos fala haveria de se lembrar do dia em que, diante do cercadinho, o capitão Jair Messias Bolsonaro, ao ser questionado sobre o fim do programa de livros, fuzilou: “os livros hoje são um amontoado de muita coisa escrita”. A inefável burrice do aforismo não é surpreendente, claro, nos cansamos de dizer o quão obscuros, abjetos, ignorantes eram aqueles tempos. Mas, entre o espanto e o escárnio, essa citação taí pra provar que eu, sim, me ressenti. Como todos sabem que o ressentimento move o mundo, e que minha vida é implorar para fazer as pessoas lerem — como editora, livreira, curadora, amiga — começo essa newsletter com a pena da força do ódio e a tinta da paixão pelos livros (porque de galhofa e melancolia o inferno está cheio — quem leu Machado sabe).
Esteja inaugurada, pois, mais essa cartinha que chegará toda semana, com uns cinco ou seis livros no cardápio. Tem de tudo, meio no ritmo do que eu leio e do que eu gosto, porque todas as cartasde amor não sei se são ridículas, mas são idiossincráticas. Óbvio que não dá pra cobrir a lacuna gigantesca de espaços de crítica e conversa sobre os livros nessa imprensa cada dia mais magra, mas espero que dê uma vidinha mais alegre para os livros esquecidos. Eu queria mesmo era chamar isso de Menos vendidos, mas jamais gostaria de ofender ninguém (o fracasso é muito subestimado neste país).
Pois bem, aí estão meus trocados. Que pelo menos sejam divertidos.
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cardápio da semana

o mais mais
Um preferido da semana, aquele que dá pra indicar para todo mundo
O VERÃO EM QUE MAMÃE TEVE OLHOS VERDES
Tatiana Tibuleac
Tradução Fernando Klabin
Mundaréu
240 pp
A história narrada por um garoto, digamos, neuro divergente sobre seu desgostoso reencontro com uma mãe brutal, torta, torpe, no verão em que passam juntos é uma literatura esquisita, mas do melhor jeito de ser esquisito. Apesar de a autora ser da Moldávia, o cenário é uma praia francesa meio decadente, e, depois que a mãe o resgata de uma espécie de sanatório/ orfanato em que ele vive, os dois vão passar o verão numa casa meio destruída, meio em construção (como eles?) e se misturam com o cotidiano da vila. A cada dia, vão virando parte da paisagem, se tranformando desses personagens meio freaks, meio fracos em, ora veja, uma dupla de mãe e filho (como todas, como só eles). É sempre um espanto quando o afeto humano demasiado humano surge desses encontros. Tudo parece desolação e deslocamento, mas aí tem a vida (e a literatura) no caminho.
P.S. Quem falou de livro comigo nos últimos três anos saiu com essa indicação. E talvez seja minha dica mais certeira.
passou batido
Uma pérola em que quase ninguém prestou atenção
DEPARTAMENTO DE ESPECULAÇÃO
Jenny Offill
tradução Carol Bensimon
Todavia
136 pp
Uma mulher encontra um homem, se apaixona, casa, tem filho e separa — e nenhuma sinopse pode parecer mais banal. Mas que belíssimo jeito de contar. O romance é todo feito de trechos de diário, às vezes uma carta, alguns excelentes aforismos, listas imperdíveis, uns bilhetes espirituosos (“Departamento de especulação”, do título, é como o casal endereça as cartas à guiza de DR que trocam o tempo todo) — e esses trechinhos todos vão montando um cenário pavoroso, dolorido, mas várias vezes cômico, que é o que chamamos de vida comum. No fim, a gente até fica com vontade de que ela radicalizasse mais, enlouquecesse mais, e tem lá um sotaque levemente moralista. Mas o caminho é muito aprazível, é um livrinho para uma tarde e eu não falo mal de nenhuma chance de dar umas risadas.
porque me ufano
Um brasileiro realmente bom, pra gente ter algum orgulho nessa vida
O OITO
Paloma Franca Amorim
Alameda
168 pp
O Oito é um bar numa periferia de Belém, que também não deixa de ser uma periferia no Brasil. O bar serve de encontro pra um grupo de jovens, e é um livro sobre juventude, claro, mas tem uma maturidade densa, descomunal, como parece que a vida obriga a eles terem. Muito impressionante como a Paloma escreve bonito, e como fala da floresta e da cidade, de sexualidade e de arte, de criação e de luto, de um drama familiar cheio de raízes e do Brasil. A narradora é muito atenta, e parece que tem mil olhos, capazes de falar de tudo. É lindo como ela, enquanto anda pelo Brasil (Rio de Janeiro, São Paulo, Belo Horizonte e sempre Belém), fala disso tudo que a gente conhece, mas também inventa um Brasil meio mítico, em que é possível andar tanto, com liberdade, alegria, mas sempre pisando devagar, porque a gente sabe que não é nada fácil. (E esse é só o primeiro romance dela, que tem outro livro de contos (crônicas?) de que me falam muito bem, com o título genial de Eu preferia ter perdido um olho. Vou atrás.)
esse é bom mas tem melhor
Se você gostou desse que tá todo mundo lendo, vai nesse pra prolongar a onda
Querido babaca
Virginie Despentes
tradução Marcela Vieira
Fósforo
280 pp
Eu mesma enquanto mini influencer fui correndo falar que o De quatro (da Miranda July, com tradução da Bruna Beber, a poeta mais malemolente do Brasil) era essa coca-cola toda. E acho que tem mesmo inúmeros méritos: ela é inteligente, divertida, sexy, um ser desejante, e a sinopse é uma delícia (de algum jeito, lembra a sinopse do A boa sorte, da Rosa Montero, outro livro que eu adoro, good vibes demais, que recomendo para todo mundo que pede um livro “alto astral”. e pedem muito.). E o começo do livro é essa surpresa deliciosa de ver a raridade da vida sexual de uma mulher entrando na menopausa de um jeito engraçado, vivo, desajeitado. Mas na segunda parte descamba pra um hipsterismo caricato que toma distância do que a gente reconhecia tão bem como vida real e chega num nicho todo dela que nem a Barra Funda abarcaria. Enfim. De todo modo, vale demais, rimos muito.
Meio que na sequência peguei esse Querido babaca, da Virginie Despentes, com tradução da Marcela Vieira. Aqui no Brasil já somos fãs da Despentes (principalmente da não ficção hardcore Teoria King Kong), uma autora meio fina meio doidona, mas que fala umas pertinências sobre feminismo que acho que é bom prestar atenção. Eu, fã absoluta do Ligações perigosas desde aquela tradução ruim do Drummond (desculpem), acho romance epistolar a coisa mais chique do mundo (talvez por causa do meu viés fofoqueira, que fica feliz quando pode ler cartas alheias pois respaldada pela ficção). Aqui o romance epistolar acontece com a troca de correspondência (e posts) de três personagens contemporâneos demasiado contemporâneos. Um escritor relativamente reconhecido escreve um post muito cruel sobre uma atriz famosa com seus 45+, padecendo da pressão estética e etarismo do cinema francês (“padecendo” médio, porque ela toca o foda-se). Aí eles começam uma correspondência maravilhosa, agressiva, debochada, mas também sincera e em alguns momentos bem profunda, até que ele cai nas redes de um #metoo frenético que desembocará em seu inevitável cancelamento. É divertido e assustador como o mundo vai acontecendo a despeito deles. Isso é só o começo. Um livro de risos nervosos.
E para entender a treta da semana…
Se você viu aquele filme de terror bizarro em que o Mark Zuckerberg, numa aparição fantasmagórica ligeiramente laranja-trump, anuncia que o mundo como conhecemos acabou, deve ter se perguntado o que diabos continuamos fazendo no instagram. Eu me faço essa pergunta desde que li esse monumental A máquina do caos, do Max Fisher (da Todavia, tradução do Érico Assis), uma reportagem absurdamente bem feita sobre o esgoto das redes sociais, como elas são cancerosas, e como aparentemente não tem luz no fim do túnel. Fisher entrevista uma multidão de pessoas no mundo inteiro e explica muito bem como as redes sociais são uma invenção não só alimentadas pelo radicalismo, mas criadas para produzir radicalismo, num laboratório humano sinistríssimo. E isso com uma seriedade rara no jornalismo, porque não apela pra sensacionalismo, e recusa qualquer babaquice, sem discurso vazio, mas com investigação puro sangue. Black Mirror é pinto.
Pronto, está dada a largada.
Queria muito que isso fosse uma conversa, digam coisas.
Semana que vem tem mais.
esteja ciente de que começar a semana te lendo é algo com o qual não vamos nos desacostumar...
Na "ACHAMOS QUE VALE" de hoje, da revista Gama, eis o que leio:
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LER | Literatura e humor na newsletter “A Lábia” Se a blogosfera morreu há mais de uma década, agora reencarna a cada semana, quando surge uma nova newsletter. Neste início de 2025, é digna de nota a da curadora da última Flip, Ana Lima Cecilio. Com humor, “A Lábia” traz na primeira edição o aforismo de Bolsonaro (“os livros hoje são um amontoado de muita coisa escrita”) para abrir caminhos e falar de títulos que passaram batido, outros que são a cara desses tempos e lançamentos.
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Enfim, cá estou e vou subscrever, Ana. Parabéns!!