Na Odisseia, uma das primeiras e mais deliciosas aventuras do homem na terra, quando Odisseu volta para Ítaca depois do rolê quase infinito, ele, exausto, saudoso, cheio de história pra contar, não pode dizer imediatamente que ele é quem é, escaldado com o que aconteceu com Agamemnon (que chegou fazendo estardalhaço e acabou assassinado). Atena, auxílio luxuoso de Odisseu, recomenda que ele se disfarce, sinta o clima e prepare o retorno triunfal. São páginas e páginas de deleitosíssimos hexâmetros dactílicos, porque na espera ele se agarra com todas as forças à oportunidade irrecusável de mentir inventando um personagem, mentir sobre um hipotético Odisseu e ainda ouvir o que a cidade, para quem Odisseu já é um herói mítico, tem a dizer sobre ele — mentiras com que ele parece se divertir bastante. Homero, assim, adia a tão esperada volta dando esse aplique maravilhoso, e estendendo o final da epopeia numa trama genial de mentiras e falsas peripécias. Todo mundo sabe que não apenas Odisseu, mas os heróis e os deuses não eram lá modelos de virtude. A mitologia grega é toda feita de gente como a gente, e a mentira, a trapaça, os disfarces são mecanismos fundamentais, condensados numa virtude, a astúcia, que não deixa de ser um belo substantivo para malandragem.
Em Bananal, minha cidade preferida encravada na serra da Bocaina, o poeta e violeiro Waguinho me contou que há uns anos organizaram um Festival dos Contadores de Causos e Mentiras. Salão da prefeitura lotado para receber a grande atração, um grupo de contadores de causo da cidade vizinha, Barra Mansa, quando chega a notícia que, de última hora, o grupo deu o cano e não apareceu. Os organizadores, no maior aperto, subiram no palco para se desculpar com o público, dizer que devolveriam os ingressos, imaginando uma pequena multidão enfurecida. Na primeira frase, “os violeiros de Barra Mansa tiveram um problema”, o público caiu na risada, porque deu por iniciado o festival. Os organizadores navegaram a onda e seguiram dando desculpas esfarrapadas, inventando contratempos mirabolantes, exagerando nos instransponíveis obstáculos — e assim, no susto do improviso, se fez lindamente o Primeiro Festival de Causos e Mentiras.
Minha mãe, que não era especialmente entusiasta do Carnaval e que abominava o Natal (“eu não sou nem cristã nem capitalista pra gostar disso”), adorava o Dia da Mentira. Desde que eu me entendo por gente, todo primeiro de abril ela acordava meu irmão e eu com uma história absurda, que ia de “um terremoto transportou a escola para um bairro distante” a “comprei um casal de elefantes, eles chegam na semana que vem”. Enquanto a gente crescia, as mentiras foram ficando paulatinamente mais verossimilhantes, mas eu continuava caindo. Transmiti essa nobre tradição ao meu filho, e hoje ele é tão prevenido das minhas mentiras que botou um alarme no celular para mentir para mim primeiro. Mas o fato é que fica cada vez mais difícil inventar uma mentira que tenha a medida certa entre parecer plausível e dar a coceira do absurdo. Hoje, basta abrir o jornal.
O Cortázar tem um conto assombroso, “A sáude dos doentes”, em que uma família mente unida para a mãe, que não sabe que Alejandro, o caçula e filho preferido, morreu num acidente na Europa. Eles temem pela saúde da velha, que é sempre meio frágil, e vão dizendo que Alejandro está bem, feliz, bem-sucedido. Para que a mãe acredite, estabelecem um elaborado esquema com alguém que está na Europa, para que envie cartas para a mãe em nome do caçula, e cada carta que chega é uma alegria, um acontecimento. Passam-se anos, a família acostumadíssima àquele arranjo, e quando, enfim, a mãe morre, ainda chega uma última carta mentirosa do filho que já morreu. A irmã, co-autora da farsa, lê a carta com lágrimas nos olhos, e se dá conta de que estava pensando em como é que iam contar a Alejandro a notícia da morte da mãe.
Em Poeta chileno, de outro Alejandro, o Zambra, Gonzalo é um poeta com o peito cheio de sentimentos e a pena vazia de versos. Que personagem doce, vivo, gentil, verdadeiro. Um dia, Carla, sua companheira, pede para que ele enfim leia os poemas em que tanto trabalha. Inseguro pela recepção fria dela quando ele lê os primeiros, Gonzalo tem a brilhante ideia de recitar poemas da Emily Dickson (“na tradução da Silvina Ocampo”) que ele sabe de cor, como se fossem seus. Carla se interessa. “Leia mais”. Ele então passa a ler outros poemas, agora os de Gonzalo Millan. Carla fica deslumbrada. “É mesmo muito lindo, Gonza. É o melhor poema que você já escreveu. Simplesmente brilhante.” Preso para sempre na autoria alheia, Gonzalo esconde os livros num quartinho nos fundos e torce para que Carla nunca descubra que ele é um mau poeta, um poeta ladrão, uma fraude.
Bom, não é só entre Alejandros que a mentira ganha corpo de verdade. No Brasil dos grupos de zap, temos notícia que o Chico Buarque compra as suas músicas, que diabetes é causada por uma bactéria e, sempre bom lembrar, que a Pepsi é adoçada com fetos abortados. Exemplos de mentiras que alicerçam o império da vilania, porque é toda uma engenharia de espalhar medo e ódio, esses dois deuses que andam juntos. Muito já se disse sobre não existir mais a verdade, porque ainda que uma horda de cientistas desmintam, que provas sejam dadas, quem quer acreditar, acredita. Mentira também é pacto, e um mentiroso contumaz pressupõe a existência de um ouvinte crédulo. “Conhecei a verdade, e elas vos libertará”: não é à toa que o lema do Bolsonaro, antes inquestionável como uma operação matemática, tenha se distorcido até instaurar uma verdade paralela em que o fato mais paupável (a Terra é redonda, por exemplo) pode, dependendo de onde você olha, ser apenas “mais uma narrativa”.
Dizer que a mentira é o mal do mundo me soa moralista como um Pinóquio da Disney, que fez mais mal à mentira do que a mentira a ele. No Pinocchio do Carlo Collodi ele é punido, sadicamente punido, antes por ser um canalha do que pelas peças que prega. Mentira é fabulação e já aprendemos a essa altura que ficção serve para todos os fins. A mentira moleque, a mentira faceira dos contos de Malazarte, dos causos do interior, da boa literatura, do xaveco charmoso e inconsequente do Zambra, aquela que engambela um chefe tirano, a que rebola na cara das normas tão rígidas quanto aleatórias, pode ser um entretenimento de alta qualidade ou apenas um mecanismo de defesa. Os deuses da Odisseia mentiam para se safar, a mentira está na Bíblia, no ciúme do Bentinho e nos olhos da Capitu, nas letras do Roberto Carlos e do Noel Rosa, nas cores do Van Gogh, nas fantasias de carnaval. Talvez seja porque ninguém suporta tanta verdade, o tempo todo, e a mentira seja só um truque, um jeito de corpo, uma ginga astuta que a gente incorpora para andar melhor no mundo.
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cardápio da semana
o mais mais
Um preferido da semana, aquele que dá pra indicar para todo mundo
Terra prometida, Joan Lowell
tradução Matheus Pestana
Ercolano/ 256 pp
A finíssima editora Ercolano (procurem saber) recuperou a história dessa adorável vigarista, Joan Lowell, personagem tão improvável que nem Hollywood, essa vaidosa máquina de mentiras, foi capaz de inventar: com uma imensa capacidade de fabulação, escreveu memórias, ainda quando morava nos EUA, sobre a infância que passou a bordo de navio, memórias que culminam no incêndio do barco, do qual ela fugiu nadando com uma ninhada de gatos nas costas. E ali a vida de Joan mal tinha começado. O livro fez um sucesso tão grande que, quando Lowell começou a ser desmentida, não arrefeceu a curiosidade dos leitores, e a única consequência foi mover o livro da seção de ficção para a de não ficção. Terra prometida conta a história de um desafio amoroso feito pelo namorado, o capitão de um navio que veio parar na América do Sul, de viver um sonho conjugal longe dos holofotes e uma atração irrefreável não sei bem se de se dar bem ou de passar perrengue: os dois resolvem desbravar o Brasil abrindo uma estrada até Goiás. Joan conta tudo com tamanha lábia que a gente fica achando tudo uma boa ideia. Essa lábia, aliás, foi responsável para atrair vários outros artistas, e causou uma peregrinação ao Brasil não para o luxo tropical do Copacabana Palace, mas para a terra dos Caiado. É confuso, alucinante, improvável — e, esse é o mistério dela, altamente convincente. O livro também é muitíssimo bem editado (a Ercolano é o fino, eu já disse) e tanto no prólogo, da Flora Thomson-DeVaux, como no posfácio, do tradutor Matheus Pestana, a gente vai sabendo um pouco mais da verdade dessa deliciosa mentirosa — que passou cheques sem fundos, vendeu o que não existia e acabou, enfim, desmascarada e presa por estelionato em Anápolis, porque, ó azar, a verdade truinfa no final.
passou batido
Uma pérola em que quase ninguém prestou atenção
O impostor, Javier Cercas
tradução Bernardo Ajzemberg
Biblioteca Azul | 464 pp
Não dá pra falar de limite entre ficção e realidade sem falar do Javier Cercas, essse espanhol fissurado em histórias construídas pela fragilidade da memória, pela reconstrução narrativa. Até onde eu sei, todos os livros dele fazem essa manobra de olhar os fatos pelo ponto de vista das versões, e uma coisa muito bonita é como ele faz isso reconhecendo a humanidade dos seus personagens. Nesse O impostor, ele conta o caso real de Enric Marco, um sujeito que ficou famoso na Espanha pela atuação tão ruidosa que o levou a ser presidente de uma das mais importantes associações de vítimas do nazismo. Marco tinha lutado contra a ditadura de Franco e, deportado para um campo de concentração alemão, sentiu na pele os horrores do nazismo. Só que, às vésperas de uma efeméride importante, outro jornalista revela que ele nunca foi prisioneiro nazista, nunca nem foi perseguido pelo regime do Franco. Cercas fica fascinado por este homem que reinventou o próprio passado e forjou a sua memória como parte de uma memória coletiva. E, claro, nesse processo, tirou vantagem disso, ficou famoso e de quebra fez uma militância importante pela justiça às vítimas da guerra. Cercas conta isso de um jeito muito elegante, muito inteligente, e dá de bandeja quase uma teoria sobre memória, versão, invenção. É, como o próprio Cercas define, “um romance sem ficção”.
são nossas coisas
Um brasileiro realmente bom, pra gente ter algum orgulho nessa vida
Nosso corpo estranho, Reginaldo Pujol Filho
Fósforo | 122 pp
Essa semana eu estava veementemente indicando este livro a um amigo (A Lábia tem um canal de atendimento direto por whatsapp) e ele, que não tinha lido este, mas que conhece os outros livros do Reginaldo, mandou essa: “eu curto muito as ideias dele. Todo livro é uma presepada, como se ele dissesse: ‘E se eu fizesse um livro em que... ‘E lá vem ele’.” Pois é. A presepada desse é que o Reginaldo cria um romance inteiro sobre um artista de vanguarda, mas todo, absolutamente todo, escrito em textos de parede de exposição. Muito íntimo desse léxico particular (sério, ele podia ganhar dinheiro com isso), Reginaldo faz do arremedo dos textos de críticos de arte uma segunda arte, irônica e impoluta, num livro sobre arte que não tem, ou não se refere, a nenhuma arte “real”. A mentira está não na criação de um artista que não existe — isso seria ficção banal, mas na criação de uma linguagem que traz consigo uma realidade por si só. O talento para a paródia é sensacional, e dá nervoso de ver como nem o mais grave exagero do autor seria implausível nas melhores galerias do ramo. É muito engraçado e levemente irritante (eu disse, ele imita muito bem) e talvez a piada, que é excelente, dure demais — afinal, são textos de parede. Mas é óbvio que o Reginaldo sabe perfeitamente o que está fazendo e o livro é, inegavelmente, inteligente e sacana. Eu mesma já me apaixonei por menos.
A verdade vos libertará
Uma breve história das mentiras fascistas, Federico Finchelstein
tradução Mauro Pinheiro
Vestígio/ Autêntica / 192 pp
Para que esta singela cartinha não pareça uma defesa desenfreada da mentira, vamos falar de coisas sérias. Federico Finchelstein é um historiador argentino especialista em nazismo e olha para a ascensão da extrema direita no mundo prestando atenção na capitalização que os líderes fascistas fazem da mentira, por um movimento paradoxal que é a encarnação da verdade. Quando você usa como slogan do governo um versículo sobre a verdade, como o Bolsonaro fez, você instaura a realidade que você quiser. E você toca as pessoas num desejo bizarro de certeza, entregando o que elas querem. Não é tão simples, óbvio. Mas Finchelstein, nesse livrinho tão pequeno, organiza, sistematiza, cataloga um ciclo vicioso que os governos fascistas repetem, uma espécie de script de mentiras que voltam ciclicamente não apenas como farsa, mas como desgraça. Infelizmente, um livro mais atual do que a gente gostaria. Mas também muito necessário.
Pegar pelo estômago
As mentiras da nonna, Alberto Grandi
Tradução Alessandra Siedschlag
Todavia | 208 pp
Meu mundo caiu. O seu também vai. A história que eu sempre soube que o carbonara foi inventado pelos mineiros que levavam guanciale e ovo para misturar ali na boca de fogo não passa de balela marqueteira. Do mesmo jeito a pizza como nós conhecemos não é uma tradição nacional, mas uma invenção relativamente recente para vender farinha e queijo. Engraçado que enquanto eu lia sobre “a verdade” da culinária italiana, eu ficava tentando lembrar de onde é que eu tinha tirado a “minha” versão. E a resposta não existe, porque aparentemente tudo é meio que uma criação de uma memória coletiva. Veja bem, esse livro é totalmente iconolasta, porque poucas coisas são mais endeusadas do que a comida ialiana. E é um livro engraçado, rápido, que dá uma raiva louca de ter caído no conto da tradição centenária. Mas é sobretudo engraçado, porque é meio irritado, mal humorado, e bastante demolidor. É bom pra quem gosta de cozinhar, pra quem gosta de comer, e pra quem quer ter assunto polêmico pra causar no almoço de domingo. E é cada turning point que parece mentira.
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Est’A Lábia está sendo enviada na véspera do dia primeiro de abril. Tenta contar uma mentira inocente pra alguém — é difícil, porque tem que achar a exata medida entre o verossímil e o absurdo. Mas, claro, minta com responsabilidade. Divirta-se.
Servindo bem para servir sempre, botei links em todos os títulos dos livros de que eu falo aqui. Você jamais encontrará um link da Amazon: são todos caminhos para as editoras que fazem esses livros incríveis. Claro que você pode comprar na livraria mais perto da sua casa, compre livros de quem ama os livros, sempre. Se for comprar na Amazon, paciência, entendo, mas pelo menos faça isso com culpa. Pode ser uma militância nanica, mas é a minha militância.
que alegria ver essa suposta introdução ganhando cada vez mais corpo. a gente não tá aqui só pelas dicas, não.
É um problema essa newletter. A gente fica catando os caraminguas pra poder comprar os livro tudo