Não sei se vocês viram a tenebrosa lista dos livros mais vendidos de não ficção da semana passada. O onipresente Café com Deus Pai se desdobra em outros religiosos nessa vibe coach crente, e é seguido por uma série de livros para colorir com títulos em que se combinam as palavras Comfy, Cozy e Cute. Sedentarismo cognitivo torando. Aparentemente não há o que demova gente que tem fé ou que manobra com garbo e graça uma caixa de Faber Castell.
No último episódio de 2024, o podcast Calma Urgente faz uma conversa muito boa sobre leitura, concentração, o que isso significa na vida, na memória etc. Uma novidade pra mim foi entender que a memória não funciona como um HD, essa metáfora gasta e, aprendi, inexata. A memória funciona como um músculo — quanto mais você lembra, mais você lembra. Leitura é assim também, é exercício (além de inúmeras outras coisas muito mais lindas, claro). Quando os raros brasileiros que ainda compram livros gastam seu dinheiro com os de colorir (de Café com Deus Pai eu só vou dizer que o autor chama Rostirola e eu não acredito que ninguém tinha me avisado disso), o que elas buscam não é nem sequer entretenimento (entretenimento era o Paulo Coelho, a Sabrina, a Agatha Christie. E entretenimento é legal). Livro de colorir é distração, no sentido de esvaziamento, aliás, no sentido de nada. Eu não sei o que isso significa, mas infelizmente imagino que seja uma péssima notícia pra cadeia do livro, pra cabeça das pessoas, pro mundo.
Revoltada que fiquei, porque isso de trabalhar com livro deixa a gente nervosa muito fácil, escolhi para esta cartinha livros nada comfy, nada cute, nada cozy. Eu até acho que tem livro que conforta sem ser babaca (essa loucura que chamam de “ficção de cura”). Mas esses livros aqui são todos meio desconfortáveis, apesar de lindíssimos.
Tipo a vida, né?
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cardápio da semana
o mais mais
Um preferido da vida, aquele que dá pra indicar para todo mundo
A Trilogia dos Gêmeos
Ágota Kristóf
Tradução Diego Grando
Dublinense
560 pp (divididas em três livrinhos de menos de 200 cada)
A Ágota Kristóf (1935-2011) é uma autora húngara que, como todos os húngaros seus contemporâneos, é um ser mergulhado na guerra. A guerra tirou seu lugar, sua língua, sua nacionalidade. Sua casa, sua identidade, sua literatura. E eu acho que é por isso que ela escreve como escreve, uma literatura meio cindida, meio torta, de frases escritas como por alguém que tivesse aprendendo a língua — poucas palavras, comunicação absoluta. É sobre essa cisão, aliás, o primeiro livrinho dela publicado aqui no Brasil, A analfabeta, numa tradução muito bonita da poeta Prisca Agustoni, que saiu pela Nós. Vale demais passar por ele antes.
Esse Trilogia dos Gêmeos chega em outro lugar. Nos três livros (O grande caderno, A prova e A terceira mentira) ela bota em palavras o abismo que é uma guerra na vida das pessoas, no íntimo da casa, nas cozinhas, nas camas. A história, apesar de escrita nessa língua de quem está aprendendo outra língua, sem malabarismos, mas com uma concisão encantatória, é a princípio linear: dois irmãos gêmeos são deixados pela mãe na casa da Avó, numa cidade pequena, enquanto durar a guerra. Tudo é provisório e escasso, tudo tem sujeira e desconforto, e os meninos, que são de um pragmatismo e de uma inteligência brilhantes, começam a cultivar (e essa é a palavra): a relação com a avó, a comida que eles não têm, os pequenos animais, o convívio com as pessoas da cidade. A guerra, como o sertão de Rosa, está em toda parte, e os irmãos são o pacto e o amor de Diadorim, o encantamento, a astúcia e a maldade e a delícia. É muito impressionante, acreditem.
Mais impressionante é como a história continua dos livros 2 e 3. Porque, como na guerra, as histórias de dissolvem, se misturam, se somam, se perdem. É sempre a mesma e é outra, são as mesmas pessoas e não são. Ela faz um malabarismo narrativo de gênio para mostrar a prostração do espanto. As revelações são susto, mas os suspiros de humanidade também. É confuso e não é, porque ela já botou a gente tão dentro da história, que também nós somos essas histórias de guerra. E quando a literatura vem por dentro, é das coisas mais bonitas que existem.
passou batido
Uma pérola em que quase ninguém prestou atenção
DESLUMBRAMENTO
Richard Powers
Tradução Santiago Nazarian
Todavia
336 pp
Um pai astrobiólogo (só descobri que existia isso nesse livro) e um filho que é uma criança incrível, mas também estranhíssima, têm que viver juntos depois da morte da mãe, uma ativista linda, iluminada. Obviamente é triste e comovente, mas não é só isso. O menino é angustiadíssimo com o aquecimento global, e tem uns ataques de pânicos violentos (eu sempre me pergunto como todos nós não temos esses ataques o tempo todo), mas a literatura que vem entre descompasso de sensibilidade e vida avassaldora é um jorro, uma pintura, absolutely cinema. O livro é uma exuberância de imagens, de mundo, de mergulho nos seres mais inimagináveis, como se fosse o canto do cisne de um planeta que está acabando. Dá um pouco de vertigem, mas tem uma estranheza muito bonita, muito doce. Sei lá, me deu um pouco a sensação de que a gente como planeta tá perdido mesmo, mas que a literatura ainda dá conta de falar do abismo e da angústia sendo bonita ao mesmo tempo. Parece uma viagem no tempo, uma mensagem do futuro, esses milagre espaço-temporais que a literatura faz.
porque me ufano
Um brasileiro realmente bom, pra gente ter algum orgulho nessa vida
Infinita
Camila Maccari
Autêntica Contemporânea
185 pp
Uma mulher à beira dos 30, que tem um bom emprego, um bom namorado, tá tudo aparentemente bem. Mas ela é gorda, e esse ser gorda é tudo. Um dia, ela, que estava no seu sacrossanto ritual semanal de beber uma cerveja sozinha, quebra uma cadeira e tudo desaba — a paciência, a persistência, a esperança, a empatia. E a partir daqui a história fica assombrosa.
É claro que ser gorda está no centro do livro, e os capítulos são pontuados por uma angustiante contagem do peso dela, da perda e do reganho do peso, da abjeção das dietas, das nutricionistas, das terapeutas, das academias que prometem essa espécie de “cura”. Mas a gordura no livro também é metáfora do espaço que a gente ocupa, o como a gente se vê, quem a gente é. Ela é uma pessoa que não entende seu espaço, que não consegue nem desejar nada, porque só quer deixar de ser.
O livro é doloroso, desconfortável, e a gente vai se sentindo tão mal quanto a protagonista, sem condescendência, sem autoaceitação: cruel consigo e com os outros, ela é centrada nessa dor indizível de se odiar, de ter uma raiva paralisante e horrorosa de ser quem é. E o horror que gente sente é o dela e é o nosso, e esse sentimento que a literatura dá é das melhores drogas do mundo. E a Camila Maccari faz isso com maestria, dureza, força. É corajoso, não porque confessa um segredo, mas porque inventa o indizível.
Apesar de ser das melhores coisas que eu li nos últimos tempos, é um livro terrível e angustiante, e o mérito está exatamente no incômodo. Se literatura não fizer isso, é Revista Claudia (com todo respeito à Revista Claudia. Só não pode ser chamada de literatura). A vida não é Cozy, Confy e Cute.
esse é bom mas tem melhor
Se você gostou desse que tá todo mundo lendo, vai nesse pra prolongar a onda
Tempo de espalhar pedras
Estevão Azevedo
Record
216 pp.
Eu não vou falar dos inúmeros méritos de Torto arado, vocês conhecem bem. Mas para fazer jus ao pessimismo do meu microeditorial, talvez seja importante dizer apenas que ele não é um livro de colorir, o que, dada a lista dos mais vendidos, já é alguma coisa. No mais, Brasil profundo, crítica social, imaginário brasileiro, personagens fortes etc. O que, particularmente, me dá birra é certo excesso de literatice palavrosa, coisa que um post de um cara chamado Décio Machado (isso só pode ser pseudônimo, não é possível) taxou de “literatura de quem quer imitar o que pensa que é literatura, mas não faz ideia do que está fazendo”. Fuerte, não? Talvez. Mas acho que faz sentido apontar o exagero na linguagem, o esgarçamento das metáforas em nome de uma coisa “poética”, porque poesia de verdade não surge assim na porrada, de um enfileiramento de imagens que o autor quer porque quer que sejam líricas. Quando acontece poesia na prosa é um milagrezinho da delicadeza e do manejo absolutamente consciente do léxico, da sintaxe. Tipo Rosa, tipo Osman Lins, tipo Raduan.
Por isso, se você amou Torto arado (que bom pra você) e mesmo se você não amou, vai nesse Tempo de espalhar pedras, do Estevão Azevedo. Publicado pela Cosac Naify nas mãos da minha ídola máxima da vida, a Heloisa Jahn, ele ganhou o Prêmio São Paulo de Literatura e, na mesma noite (eu tava lá, eu vi), veio o anúncio de que o Charles Cosac tinah cansado da editora. Pro livro foi péssimo, claro, porque o livro não foi trabalhado e foi meio que engolido por essa notícia bombástica. Mas sinceramente não sei se isso seria decisivo. Hoje ele está no catálogo da Record, pra nossa sorte.
O livro é a história de um vilarejo meio sem tempo nem espaço, em que as pessoas todas entram num delírio coletivo de encontrar diamantes. Aí entra a humanidade, essa gracinha, e tudo vira uma disputa de paixão e morte, incesto, belas cenas de sexo, violentíssimas cenas de violência. O Estevão escreve bem demais, maneja bem demais, e cria uns milagres lexicais sinceríssimos, porque não imita o que ele julga ser literatura, e aí é literatura mesmo-mesmo. Tem uma dimensão trágica muito impressionante, mas é aventura, é vida, é disputa, é amor. Um livraço, brasileiro por excelência, e em que cada palavra está absolutamente no seu lugar.
E a menção honrosa vai para…
A melhor época da nossa vida
Antonio Scurati
Tradução Federico Carotti
Manjuba
308 pp.
Um dos livros que eu mais gosto no mundo é o Léxico familiar, da Natalia Ginzburg, que certamente está entre as maiores escritoras do século 20. Ela viveu em Turim, no epicentro da geração mais interessante para a história dos livros (e do pensamento, e da história). Casada com Leone Ginzburg, amiga do Cesare Pavese, mãe do Carlo Ginzburg trabalhou na mitológica Einaudi e escreveu, além do Léxico, livros que misturam memória, ficção, ensaios, sempre no limite entre a ternura mais derramada da vida privada e a consciência política do seu tempo. A Natalia é tão absurda que é dessas autoras que dão saudade. Eu tenho saudade da Natalia como tenho da amiga amada que me apresentou a ela, e que morreu muito antes do que deveria.
Esse A melhor época da nossa vida, do Antonio Scurati foi uma solução e um susto pra minha saudade. É um ensaio escrito magistralmente sobre o Leone Ginzburg, que parte do momento decisivo na vida dele, quando ele se recusa a jurar fidelidade a Mussolini, perde o emprego de professor na universidade e enfrenta, com uma dignidade inabalável, todas as consequências do fascismo. Scurati faz uma investigação bonita demais das famílias que desembocaram nessa história, pintando uma Itália que é o mundo inteiro. A calma, a sabedoria, a grandeza, mas também o encanto, a ternura, a paixão, são desconcertantes pra todos nós hoje, que temos que driblar com uma imprensa manca e aviltantemente isentona a ameaça sempre renovada da extrema-direita.
Ginzburg foi um intelectual imenso, rigoroso, erudito. Empenhou cada minuto dos seus parcos anos de trabalho em liberdade para deixar um legado incalculável não só para a cultura italiana, mas para o mundo. Havia uma consciência aguda de que, enquanto o nazismo alemão e o fascismo italiano derramavam sangue e violência na vida das pessoas, o certo a fazer era dizer não, recusar a barbárie e inventar um jeito de estar com seus mortos. Num projeto editorial memorável no qual editava de Dante a Orlando Furioso, Ginzburg reafirma que a herança deixada dos homens pelos homens através das gerações é o que chamamos de humanidade, porque inventa um vínculo pulsante de vida, paixão, morte. O que se aprende é um sentimento de amizade com o leitor desconhecido — que talvez nem exista ainda. Diz Scurati: “Esse patético, grandioso amor, não tanto pelo próximo quanto pela vida estrangeira, distante, especialmente pela vida por vir. O presente tomando entre dois fogos, o passado e o futuro. Uma manobra de pinça”. É trágico, no sentido da grandiosidade. E é de um otimismo absurdo.
Mais um, porque o gosto é bom:
“Diz-se que resistir traz alegria. Homens que, no momento da prova, resistiram disso deixaram testemunho a todos nós que nunca a enfrentaremos e provavelmente nunca a enfrentaremos. Esses homens escreveram sobre os dias em que se desvanece qualquer esperança terrena, quando a dor física parece oprimir, e a vida, se dissolver na dor. Os dias em que os amigos estão longe, tendo-os talvez esqeucido, talvez traído. E esses homens testemunharam qe mesmo naqueles dias, precisamente naqueles dias, a resistência oposta ao mal, à dor, lhes trazia ‘uma alegria íntima, violenta, turbilhoante’.”
Escrevi demais nessa edição. Como dizia o Graciliano, “desculpe a carta longa, eu estava sem tempo”. Prometo mais concisão.
Estou muito feliz que a cartinha tá andando por aí e agradeço demais os compartilhamentos e a companhia. Continuem por perto, que a vida não é comfy, mas com gente pra conversar é melhor.
Semana que vem tem mais.
Sou adepta dos livros de colorir como atividade manual para acompanhar atividades intelectuais: ouvir um podcast, uma aula ou um áudio livro. Ajuda a concentrar, quem tem atenção dispersa, recomendo!
Agora, acredito que algo (não que esse algo esgote a discussão) a se dizer sobre a popularidade de livros "de conforto" digamos assim é exatamente uma das frases do texto, a vida é desconfortável. E muito. Não sei se vejo algo de errado em consumir conteúdo que traga um alento quando todo o resto, rede social, jornal, conversa na fila do pão, são sobre tudo de ruim que acontece ao redor.
É bom consumir só isso? Acho que não. Mas tem seu valor. É preciso saber descansar e imaginar que as coisas pode ser boas/simples.
A gente tem que ver com UNESCO como faz pra registrar esta conta como Patrimônio Imaterial. Tá na hora. ❤️