Eu tenho essa frase na cabeça há anos. Pensei que poderia ser do próprio Flaubert (mas a dele, também excelente, é “A Madame Bovary sou eu”), aí desconfiei do Machado (Capitu feelings), depois achei que era do Nelson Rodrigues. Googlei miseravelmente, convoquei o melhor checador do Brasil, apelei pra memória de amigos menos desmemoriados, deu em água. Vou pressupor que a frase existe, e que foi dita num contexto de defender os livros “imorais”, como se a literatura fosse um manual de condutas, e que um leitor de Grande Sertão: veredas fosse imediatamente pra encruzilhada mais próxima evocar seu própio pacto, ou que maridos zelosos passassem imediatamente a olhar de soslaio para suas vetustas esposas assim que fechassem o O primo Basílio.
As pessoas têm mania de achar que leitura serve para alguma coisa. Naquele famigerado e pessimista Retratos da Leitura do Brasil (pesquisa bem completa feita pelo Instituto do Livro, responsável pelo aumento da sertralina no mercado editorial brasileiro), tem lá um dado louco que é que mais de 80% das pessoas acham que deveriam ler mais. Mas por quê? Para ser um profissional melhor, para aprender a liderar, para se comunicar com mais clareza, para ser uma mãe mais satisfatória, para criar bons cidadãos, para ser amantes mais amantíssimos, para deter a fórmula do sucesso, para alguma coisa. É triste o senso comum. Porque quem lê sabe que a leitura tem lá seus nada desprezíveis ganhos colaterais, mas, basicamente, não serve pra nada. Se você é adepto do romantismo moderado, se você é um cínico pérfido, se você é um fanfarrão irremediável, muito provavelmente continuará o sendo (e fará formações frasais como esta).
A gente lê para reconhecer a miséria do mundo, para fazer parte de uma humanidade que raras vezes sabe para onde está indo, para viver um pouco o que outros vivem, para escapar da solidão, para rir, para se emocionar, para passar o tempo. A gente lê porque é bom. A leitura não faz você melhor, nem pior. A leitura só faz companhia.
Onde eu quero chegar com isso? Não sei. Talvez pedir licença para indicar estes livros com narradores abjetos sem padecer da pandemia de moralismo que nos assola. Talvez só pra te convencer a ler sem querer nada em troca. Talvez para reconhecer que todos nós temos mesmo dentro de nós o doutor Jekyll e o mister Hyde, e tudo bem, porque às vezes um se apaixona como um tolo e o outro, pistola, queima navios e cartas de amor; às vezes um salva uma vida e o outro chuta um cachorro na rua. É a vida. E se a literatura fala disso, não sou eu que vou culpá-la por ser assim, humana, demasiada humana.
P.S. Agradeço se alguém achar o autor da frase. Ou se for o autor da frase. E desculpa se eu esqueci que foi você que disse, mas se te botei na conta do Nelson Rodrigues é porque eu realmente gostei.
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cardápio da semana
o mais mais
Um preferido da semana, aquele que dá pra indicar para todo mundo
O deserto e sua semente
Jorge Baron Biza
tradução Sergio Molina
Companhia das Letras
232 pp
Filho de um casal conhecido na alta classe argentina, Jorge Baron Biza cresceu entre as brigas estrondosas dos pais, ele um boêmio irascível e ela uma mulher lindíssima, apaixonada pelo marido, mas certamente de saco cheio do ciúme e do controle. Casamento anos 1950, né? Entre términos e voltas, um dia o marido enfim concede o divórcio, marca com ela e os advogados no seu apartamento, onde ela já não morava. Jorge vai junto acompanhar a mãe. O pai saca um vidrinho com ácido sulfúrico e joga no rosto dela. No dia seguinte, o pai se joga da janela da mesma sala.
Quando o livro foi publicado na Argentina numa edição do autor, foi bem recebido, mas lido mais numa chave autobiográfica (o que de fato ele é). E é claro que isso é compreensível: os pais eram famosos, a mãe uma espécie de rival pública da Evita Peron, eram ricos, tinham charme. Mas, como disse o próprio Jorge, num lamento também compreensível: “o sofrimento não legitima a literatura. O que legitima a literatura é o texto”. E o texto aqui é tão absurdo, tão espetacular, tão sinestésico que a gente sofre e se compadece de um narrador bruto, desumano, mas que, nessa brutalidade, é um pouco todos nós. Os anos em que ele acompanha a mãe são também os anos de sua formação, e poucas vezes eu li um livro com tanta dor — a moral e a física. É assombroso que um livro tão cheio de dor seja uma literatura tão fina.
(Isso não é um spoiler, porque tá na orelha do livro. Mas Jorge, alguns anos depois de publicar o livro, se jogou da mesma janela que o pai. É barra, amigos, mas a vida também é.)
passou batido
Uma pérola em que quase ninguém prestou atenção
E quem é Maryl Streep?
Rachid Al-Daif
tradução Felipe Benjamin Francisco
Tabla
192 pp
Rachid é um tradicional homem libanês, que descola uma bela mulher pelo sistema arranjado deles. Acontece que a bela mulher é ligeiramente ocidentalizada — criada com uma TV em casa, aprendeu inglês e assiste programas americanos, o que faz com que ela não seja exatamente uma boa mulher árabe, como Rachid espera. Rachid é tosco, grosseiro, obviamente machista, mas tem algo legítimo no seu desejo de fazer o casamento funcionar. Ele compra uma TV, não entende nada, mas fica ali espiando como se vive do outro lado do mundo. Um dia, tá passando Kramer X Kramer, o maravilhoso dramalhão em que Dustin Hoffman e Meryl Streep se digladiam num divórcio choroso, aquela coisa anos 80, quando as pessoas descobriram que podiam se separar. O nosso Rachid cai de amores por Meryl Streep e passa a imaginá-la como a mulher ideal. É muito engraçado, é bastante constrangedor, tem vários momentos que dá uma raiva terrível (ele é um idiota, e ele narra o livro), mas é muito surpreendente, porque a gente não tá acostumado a ler livros narrados por gente tão diferente de nós, com um sistema racional que não é o nosso. Pra piorar a confusão (imaginem o livro sendo lido no Líbano, e ele foi muito!), o personagem tem o mesmo nome do autor, e a mistura está feita (parece que ele faz sempre isso: um protagonista homônimo, sempre com os comportamentos mais duvidosos). É estranho e é engraçado, é ligeiramente ofensivo, mas são ótimas horas de leitura passadas no Líbano. Vai lá ver.
sempre um clássico
Porque o Calvino disse que clássico é o livro que nunca parou de dizer o que tinha de dizer
O homem que corrompeu Hadleyburg
Mark Twain
Tradução Ronaldo Bressane
Grua
Um sujeito cheio de malandragem passa por uma cidadezinha conhecida pela virtude inabalável dos seus cidadãos. Ele se sente meio humilhado por tamanha nobreza de espírito e resolve fazer uma espécie de vingança, que é quase uma aposta consigo mesmo: de que é capaz de provar que ninguém é tão puro quanto parece. Aí ele aplica um golpe de dimensões municipais, que envolve uma mala de dinheiro, incitação à cobiça, sementes de intriga e um humor cínico que é uma delícia. Tem cara meio de Dias Gomes, com umas pitadas de Lima Barreto nos seus dias mais bem-humorados. É tudo meio caricatural, e a historinha parece uma fábula, mas o humor pede isso mesmo e rende excelente pastiches de personagens.
(Este livrinho faz parte de uma coleção da Grua chamada A Arte da Novela, cheia de histórias muito bem escolhidas e muito bem traduzidas. Tudo ali vale a pena, principalmente pra quem não tá conseguindo ler muito.)
esse é bom mas tem melhor
Se você gostou desse que tá todo mundo lendo, vai nesse pra prolongar a onda
Fun Home
Alison Bechdel
tradução
Todavia
304 pp.
N’A Lábia da semana passada não teve essa parte, e uns amigos vieram dizer que sentiram falta. Eu tô de olho em vocês que querem ver é o circo pegar fogo. Mas aí resolvi manter o título, ainda que seja meio mentiroso, meio que adaptando pra uma coisa “Gostou desse? Tem esse também”. Porque esse negócio de “melhor” em literatura pode ser uma bobagem desastrosa. Hoje, por exemplo, não tem isso de melhor. É só uma espécie de segue o fluxo.
Quem me conhece sabe do meu amor pelo Édouard Louis. Li tudo, dei de presente, chamei pra Flip, botei ele numa mesa sozinho porque acho que o rapaz tem muita coisa a dizer. E, pra quem, como eu, tá nessa paixão por ele, emenda no Fun Home, da Alison Bechdel. É uma HQ primorosa que eu costumo dizer, sem nenhum medo de errar, que é também um romance primoroso. A Alison faz um retrato do pai, um sujeito calmo, levemente excêntrico (pra mim, quem lê Proust é excêntrico) que cuida de uma funerária na própria casa deles (daí o Fun Home). Ela tem por esse pai um respeito meio distante, uma reverência curiosa, porque não entende muito quem é ele, o que ele está fazendo ali. E, ao mesmo tempo que ela tenta entender, ela também vai descobrindo a própria sexualidade (ela é lésbica, uma grande lésbica, militante e conhecedora, autora também do maravilhoso As perigosas sapatas, que é tipo um Friends de sapatonas).
Essa semana, portanto, não teve circo pegando fogo, mas uma sinceríssima recomendação: leia HQ . Eu já tive medo de HQ, porque sou do texto. Mas quando um texto absurdamente bonito vem embrulhado em desenhos espertos como esses, é tudo lucro.
“A cadela do nazismo está sempre no cio etc.”
Cada um morre por si
Hans Fallada
Tradução Sonali Bertuol
Carambaia
768 pp. (e eu JURO que vale cada uma delas)
Quando eu era pequena e estudava história, eu sempre me perguntava como é que as pessoas foram entendendo que o nazismo tinha chegado. Como é que ninguém fez nada, como todo mundo permitiu que isso escalasse. É um lugar comum de criança, acho, mas eu queria nunca ter perdido o susto que é um horror desse acontecer. Nos últimos anos, eu tive minha curiosidade desgraçadamente saciada, porque o que aconteceu aqui no Brasil com o Bolsonaro e em tantos outros países em que o autoritarismo escalou nas suas muletas de moralismo e populismo, a gente tem visto didaticamente como a população é manobrada. Este é um livro sobre isso.
O cenário é um prédio em Berlim, em 1939. Nos apartamentos, uma gente comum, classe trabalhadora, ali vivendo como pode. Tem uma família alcoolcentrada de uns meninos meios idiotas, um velho professor judeu, um golpista fuleiro que vive procurando um jeito de ganhar uns trocados, um casal de velhos cuja única esperança é o filho, um jovem que acabou de se alistar no exército. Quando o filho deles morre na guerra, cai uma ficha gigantesca nos dois do erro que é o Hitler para a Alemanha. E eles passam a escrever cartões postais dizendo “verdades” e fazendo pequenas operações de guerra para deixar os cartões espalhados pela cidade, numa espécie de alerta aos cidadãos. Como se vê, é uma micro revolta, mas é o que está ao alcance da indignação de ter perdido um filho por nada.
O livro é a história de como as pessoas se adaptam a uma rotina nova, em que o terror se instaura até desaguar naquele final que conhecemos bem, e, se é horrendo o fim do velho professor judeu, a família dos meninos meio idiotas descobre que tem um futuro promissor na carreira na SS e de repente é a melhor época da vida deles, e o golpista fuleiro descobre que se entregar alguém de atitudes suspeitas pode conseguir uns trocados. Frente ao horror, as pessoas vão dando seu jeito de viver — uns, engrossando o caldo da resistência, outros, usando uma maleabilidade moral oportunista que renda alguns frutos. É ruim pra todo mundo, mas pra alguns tem lá suas vantagenzinhas. Aparentemente é assim que começa o nazismo.
Talvez essa cartinha tenha ficado meio baixo astral — narradores imorais tem isso de dar um nó no nosso conforto. Mas é um bom exercício, garanto. E os livros são espetaculares.
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Servindo bem para servir sempre, botei links em todos os títulos dos livros de que eu falo aqui. Você jamais encontrará um link da Amazon: são todos caminhos para as editoras que fazem esses livros incríveis. Claro que você pode comprar na livraria mais perto da sua casa, compre livros de quem ama os livros, sempre. Se for comprar na Amazon, paciência, entendo, mas pelo menos faça isso com culpa. Pode ser uma militância nanica, mas é a minha militância.
Não sei quem falou a frase da Bovary, mas sempre me lembro que a Ariana Harwicz diz que escreve aquelas perturbações pra não precisar cometê-las ;)
(fiz a preparação de texto do "E quem é Meryl Streep?" e nunca senti tanta raiva de um narrador, é muito bom; e não consegui ler o do Baron Biza, tanta dor)
A expressão "família alcoolcentrada" organizou muita coisa aqui pra mim. Grata.