Caros jovens,
eu detesto parecer nostálgica, mas serei obrigada a meter um “no meu tempo é que era bom”. Aliás, minha nostalgia a essa altura, no número 22 desta cartinha, não é segredo pra ninguém — aparentemente vem acoplado ao status de leitora ao menos uma leve dose de nostalgia. O fato é que lamento sinceramente por vocês, ó jovens gerações, que nunca saberão o que é uma carta. Uma carta escrita à mão, com seus garranchos e sua caligrafia, suas manchas, marcas, cola, rasgos, rasuras. Uma carta com envelope manuscrito, em que a gente lia o próprio nome com a volúpia da curiosidade. Crianças e mocinhas enamoradas desenhavam corações e pequenas flores, adultos iam na austeridade de um grifo simples; para os mais devotos um “Deus abençõe o carteiro” escrito no lado de fora do envelope. A variedade dos papéis, o improviso do suporte como marca da urgência, os selos, os P.S.s, um eventual perfuminho, flores secas, recortes de jornal, ah, as fotografias.
Num tempo, jovens, em que nem tudo era foguinho nos stories, as cartas eram mais do que veículos comunicantes. Porque, vejam bem, não sou tão obsoleta que me refira a tempos sem telefone para resolver as coisas. Mas a conversa cozinhada, lenta e amorável, além de ser cara demais para o telefone — eu tive uma avó que morreu com pânico de DDD —, com todo seu encanto comunicante, sua aura confessional e uma vontade de esticar conversa que só era possível nas cartas. Mas cartas são, por óbvio, provas materiais — e aí amores escusos, pérfidas chantagens, segredos que o papel não reteve são um manancial de enredos os mais deliciosos.
A poeta Ana C., que teve as cartas organizadas num volume chamado Correspondência incompleta, escreveu a uma amiga que “cartas e biografias são mais arrepiantes que a literatura”, e não duvide, jovem, porque cartas exalam uma intimidade de diário e falam mais ao coração que muito diálogo tête-à-tête.Talvez você, jovem que me lê, nunca tenha escrito de próprio punho uma cartinha para seu crush, muito menos recebido uma declaração anônima com a letra disfarçada (meu 13 anos foram epistolarmente animados), mas certamente já esbarrou por aí em histórias em que as cartas são, se não as grandes protagonistas, ao menos coadjuvantes de peso.
Em O primo Basílio, a megera, megeríssima Juliana arruina a vida da infeliz Luísa quando toma posse das cartas trocadas com o primo. Mas nem sempre elas são vilãs: em A palavra que resta, do Stênio Gardel, a carta que um amante deixou para o outro, analfabeto, é o que move o romance, que faz com que ele queira aprender a ler, conhecer o mundo, sair do lugar. Foi escrevendo inspiradíssimas cartas de amor (em nome de outro, é verdade) que o feioso Cyrano de Bergerac conquistou a amada. Galileu Galilei passou duas décadas trocando correspondência com sua filha freira, soror Maria Celeste, enclausurada desde os treze anos, e aquilo ali é o que existe de mais lindo na mistura de amor e de ciência. Um dos livros mais absurdamente estruturado, em delírio e jorro narrativo, é o Crônica da casa assassinada, do Lúcio Cardoso, em que as cartas formam um retrato estranho e alucinado, cheio de silêncios e lacunas, e a história aparece nesses próprios silêncios. Isso pra nem falar das cartas anônimas e bilhetinhos, que povoaram os livros do Dalton e do Nelson, esses meus preferidos. Lá do romantismo vêm as cartas cheias de sofrência do virjão Werther, que é jovem como você, jovem, e sofria talvez um pouco mais, mas usava a pena, e virou um clássico da literatura universal. E ainda tem a Hilda Hilst, com a exuberância safada de Cartas de um sedutor, o Mário de Andrade, que trocou carta com todo mundo, o divertidíssimo Correio literário da Wislawa Szymborska, a tristeza quase insuportável das injustiças de A cor púrpura. E etc etc.
Se as cartas são meio onipresentes na literatura é porque elas eram onipresentes na vida. Carta é comunicação, declaração, carinho, prova, testemunho, companhia — claro. Mas elas eram também um exercício micro de literatura, a chance de a gente botar no papel, com graus diferentes de desenvoltura e talento, o que nos ia por dentro. Depois, vocês sabem, jovens, vieram os emails, os MSM, os inbox, os whatsapps, o áudios. E eis que desaparece na poeira dos tempos, meu jovem, todo um gênero literário tão simpático, confessional e íntimo. Tá vendo, meu jovem: nostalgia. Para curá-la, trago estes livros epistolares, com esse sotaque de século 19, que constroem essas histórias na troca. São humanos e conversadores, e íntimos e amorosos, uns mais engraçados, outros formais e até um tanto desesperados. Mas tudo isso é o que a gente enxerga, quando olha as pessoas muito de perto.
Um beijo,
Ana
P.S. Muito tenho escutado, sobretudo nesse mundo do substack, sobre como essa rede social (é uma rede social?), é mais tranquila e aconchegante, porque não tem a velocidade do scroll infinito, e as pesoas, aqui, se dedicam a textos maiores, mais pensados, que comunicam com tempo e graça. Pois é: cartas.
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cardápio da semana
o mais mais
Um preferido da semana, aquele que dá pra indicar para todo mundo
A cidade e a casa, Natalia Ginzburg
Tradução Iara Machado Pinheiro
Companhia das Letras/ 304 pp
A Natalia tem dois romances epistolares, esse e o Caro Michele — mas no outro as cartas são misturadas a uma narrativa que tenta dar uma organizada em tudo. Neste aqui, as cartas trocadas são de um grupo de amigos que se corresponde entre os anos 1970 e 80, quando um deles sai da Itália para os EUA, naquelas de sonhos da juventude e promessas de futuro. Ao longo dos anos, paixões, desgraças, mortes, uma melancolia muitíssimo ginzbugueana, e a escrita espantosamente perfeita dela. Como os anos vão passando, tem toda uma dimensão da fragilidade das coisas, dos laços, das convicções, do tempo, ainda reforçada pela verdade, ao menos momentânea, que cada uma das cartas carrega. A Natalia é uma autora absurda, porque tem uma inteligência sentimental vívida, uma conversa doce e um jeito muito próprio de instaurar a intimidade. Em cartas, então, é puro derramamento de coisas estranhas e adoráveis.
passou batido
Uma pérola em que quase ninguém prestou atenção
O gabinete negro, Max Jacob
Tradução Luiz Dantas
Carambaia/ 248 pp
Max Jacob, apesar de menos conhecido no Brasil, foi um artista central na maluquice das vanguardas francesas na década de 1920. Amigo de todo mundo, pintor, divertido, inventou de fazer essas cartas, todas com remetentes fictícios, e deu o nome de Gabinete Negro, nome do serviço de espionagem do Antigo Regime, que não media esforços para meter a mão na correspondência alheia. Com esse gosto de voyerismo, ele inventa cartas que vão do século 9 ao 20, numa linguagem que acompanha o estilo do tempo — e que é a prova incontestável desse cubista maluco. Nas cartas, tem queixas, pedidos, conselhos, declarações, burocracias, histórias de amor. E essas cartas tão breves são tão engenhosas que a gente fica com vontade de ler as respostas, de saber mais, de que elas fossem romances. Quase todas as cartas são comentadas por alguém aparentemente isento, como se fosse mesmo um funcionário do gabinete. E aí é cheio de ironia, sarcasmo, numa crítica às aparências e à vanglória do mundo.
são coisas nossas
Um brasileiro excelente para dar algum orgulho nessa vida
Cartas à rainha louca, Maria Valéria Resende
Objetiva / 144 pp
No século 18, uma freira enclausurada em Olinda é, quase de um jeito preocupante, obcecada em mandar cartas para a rainha Maria I, a famosa Rainha Louca. Isabel das Santas Virgens, a missivista, é inteligente, astuta, espirituosa, e conta com um texto que mistura uma fala histórica com umas pontadas de regionalismo os absurdos da vida na província, sobretudo da parte dos homens com poder concentrado — suas violências, suas fúrias, seus destemperos. Nessas agruras, conta a história da nossa colonização desse ponto de vista meio doméstico, mas sem deixar de tratar a violência como violência, e o peso da vida das mulheres que nunca conseguiam sequer botar o nariz pra fora daquele contexto. Nem é preciso dizer que um livro desses exige uma baita pesquisa, o que Maria Valéria faz bem demais, além de um conhecimento cheio de afeto sobre até que ponto a amizade entre mulheres pode ir.
Tem sempre um clássico
Por que Italo Calvino nunca deixou de ter razão
As relações perigosas, Choderlos de Laclos
Tradução Dorothée de Bruchard
Companhia das Letras/ Penguin / 480 pp
Pra mim esse aqui é o pai de todos os livros epistolares. Escrito por esse militar francês craque, de nome quase impronunciável, o livro nasceu pra ganhar um tipo de concurso num salão, e inventou uma história de intriga e sacanagem em plena corte francesa do século 18, que é contada a partir do conjunto das cartas trocadas por seis ou sete personagens, sempre mudando o ponto de vista e o grau de sinceridade, dependendo de quem escreve pra quem. Os dois maestros da trama são o Visconde de Valmont e a Marquesa de Merteuil, essa dupla adorável de pilantras irremediáveis, e nas cartas deles — circundadas pelas dos personagens de que eles falam — se revela uma dança de aparências, manipulações, golpes armados, ascensões e quedas. Talvez você já tenha visto um dos dois bons filmes adaptados do romance, mas vale a leitura demais, porque é chique e engraçado, surpreendente e amoroso, cheio de turning points que fazem a gente ficar torcendo pelo destino desses personagens que ganham tanta vida — justamente por falarem por si, em cartas ora sinceronas, ora de uma falsidade avassaladora. Tem outras traduções por aí, como a do Drummond, que fazia esses frilas pra ganhar uns trocados da Globo de Porto Alegre, mas é meio estranha, pois cheia de uns “vós” desnecessários e um vocabulário de poeta que não é tradutor. Essa da Companhia me parece muito mais orgânica, embora você tenha que lidar com essa capa absolutamente, em todos os sentidos, inexplicável.
Recordar é viver
Um livro de que já falei, pra te dar uma segunda chance se você ainda não foi nele
Querido babaca, Virginie Despentes
Tradução Marcela Vieira
Fòsforo / 280 pp
Aqui no Brasil já somos fãs da Despentes (principalmente da não ficção hardcore Teoria King Kong), uma autora meio fina meio doidona, mas que fala umas pertinências sobre feminismo em que acho que é bom prestar atenção. Eu, aqui vocês já perceberam, acho romance epistolar a coisa mais chique do mundo (talvez por causa do meu viés fofoqueira, que fica feliz quando pode ler cartas alheias pois respaldada pela ficção). Aqui o romance epistolar acontece com a troca de correspondência (e posts) de três personagens contemporâneos demasiado contemporâneos. Um escritor relativamente reconhecido escreve um post muito cruel sobre uma atriz famosa com seus 45+, padecendo da pressão estética e etarismo do cinema francês (“padecendo” médio, porque ela toca o foda-se). Aí eles começam uma correspondência maravilhosa, agressiva, debochada, mas também sincera e em alguns momentos bem profunda, até que ele cai nas redes de um #metoo frenético que desembocará em seu inevitável cancelamento. É divertido e assustador como o mundo vai acontecendo a despeito deles. Isso é só o começo. Um livro de risos nervosos.
É isso, meus caros, uma carta sobre cartas. Vocês aí me escrevam de volta, porque a parte boa de uma carta (e o que é uma newsletter) é que ela tem volta. A gente tá nessa brincadeira é pra conversar, não é mesmo?
Assim me despeço com um beijo,
Ana
Servindo bem para servir sempre, botei links em todos os títulos dos livros de que eu falo aqui. Você jamais encontrará um link da Amazon: são todos caminhos para as editoras que fazem esses livros incríveis. Claro que você pode comprar na livraria mais perto da sua casa, compre livros de quem ama os livros, sempre. Se for comprar na Amazon, paciência, entendo, mas pelo menos faça isso com culpa. Pode ser uma militância nanica, mas é a minha militância.
Já te contei que a origem do pseudônimo "Fábio Moon" vem de cartas de amor secretas que eu datilografava e mandava pelo correio para uma menina que eu gostava no primeiro colegial? Nas cartas, eu assinava Moonshadow, que é um personagem de um Quadrinho que eu amava naquela época. Eu copiava a assinatura do personagem no final das cartas com uma caneta tinteiro (que era a ferramenta mais rebuscada e romântica que eu tinha com 14 anos).
Cara Ana,
Sua missiva [amo para sempre essa palavra] chegou na primeira hora do dia. Chove na cidade mais solar e a cã se inquieta porque sabe que não vai passear.
Sua cartinha figura entre as minhas preferidas - talvez a mais entre todas até aqui e agradeço de antemão as dicas. Como vai a vida, o Palmeiras e a saúde?
Saudades do cafezinho que nunca tomamos [ainda]
Beijos
É.
PS: Chordelos de Laclos é e sempre será meu nome de drag.