“Nesse todo mundo vai votar, nem precisa.” “Esse passou batido, mas vou votar só de pirraça.” “Mesmo meio cancelado, tem que entrar, que livro monumental.” “Pode poesia, né?” Esse era o tipo de mensagem que troquei com alguns “especialistas” amigos meus (e que sorte ter tantos amigos especialistas), quando, em setembro de 2024, o Walter Porto nos fez o convite para mandar uma lista dos 10 melhores livros brasileiros do século 21. As instruções eram breves e abertas: “livros escritos por autores e autoras brasileiras, lançados em editoras também brasileiras a partir de 1º de janeiro de 2001”, com foco em obras literárias. Se alguma vertigem é inevitável (“que difícil, só 10!”), quando a gente pensa dois minutos, as escolhas vão parecendo cristalinamente óbvias, como se chamassem a si mesmas, em forma, conteúdo, tema, relevância. E a variação é o molho das idiossincráticas escolhas subjetivas que, óbvio, tudo bem, né?
Longe de mim fazer a linha “quantos brasis cabem no Brasil”, mas a lista saiu, vária e consistente. Ainda que seja inevitável questionar um milhão de coisas, a lista funciona para o que uma lista deve funcionar: guia para o futuro e inventário do passado (recente), mas, sobretudo, matéria-prima do retrato do presente, ensaiando a resposta para a pergunta gigante e irrespondível: o que é a literatura brasileira, hoje? Na lista, um punhado de livros premiados (o que significa, imagino, que a crítica está olhando pro lado certo), alguns poucos mais vendidos, mas, de modo geral, todos muitíssimo comentados nesse universo mínimo de leitores de literatura brasileira, uma pequena comunidade em que me movo com os pés prudentes do privilégio, comunidade para a qual a lista não foi exatamente uma novidade, já que se há alguma coisa em comum entre os livros é que todos, em algum momento, apareceram neste lugar mágico e misterioso que é a livraria.
As livrarias são vitrines palpáveis desta entidade virtual que chamamos de Mercado Editorial, reflexo do que a gente lê (e a gente lê pouco). Meu otimismo irremediável e auto ilusório insiste em me manter convicta de que há nas livrarias, as boas livrarias, com curadorias sérias, e em geral as pequenas livrarias, um retrato razoavelmente fiel do que nós somos como país. E foi na livraria que esses 25 livros se fizeram, no boca a boca com os livreiros, nas indicações que vão além do prêmio Jabuti ou da lista de mais vendidos do Publishnews (tem o rascunho de um’A Lábia sobre essas listas, qualquer dia chafurdo nisso). E se há injustiça na lista é porque o Brasil tem injustiça mesmo, vamos fazer o quê, paciência e luta.
Não dá pra ser cego e ignorar a transformação que há na lista, uma transformação mestiça como a população brasileira, e eu realmente fico entre os dois textos de análise — o da vetustíssima Walnice Nogueira Galvão e o da brilhantíssima Bianca Santana. Se não concordo 100% com a Walnice, ao dizer que há uma primazia do conteúdo sobre a forma, é porque acho que livros como O avesso da pele ou O sol na cabeça, por exemplo, vão muito além disso: os livros do Jeferson Tenório e do Geovane Martins são exercícios de linguagem incontornáveis, não exatamente porque têm a temática da negritude. Com a Bianca, concordo em dizer que finalmente houve uma reparação, e poucas artes mudaram tanto quanto ao tema e a presença como a literatura — veja bem, a música brasileira sempre olhou para isso, assim como o cinema, ou mesmo as artes plásticas. Na literatura, esse turning point é muito mais sensível. Que isso é uma ótima notícia, é impossível contestar. E é comovente ver isso acontecer em todos os espaços, essa micro reparação histórica, estamos tão atrasados, credo, um dia chegaremos lá.
Nessas coincidências que a vida prega, a lista saiu na véspera desta Lábia #20. Foram vinte semanas recomendando os 97 livros que meu excel mambembe contabiliza. São 97 livros de que gosto e que gostaria que mais gente lesse. Tem sucessos editoriais (sucessinhos, pois editoriais), alguns livros que, sim, mudaram minha vida, outros levinhos pra quem quer gostar de ler, uns que entraram mais pelo tema da semana do que por figurarem no meu panteão, mas são 97 livros que valem ser lidos (eu estou aqui para conquistar vocês falando bem de livro, no dia em que eu falar mal vai ser engraçado, mas vai sair todo mundo correndo). Então, agarrei a mão dessa coincidência, e vai um’A Lábia diferente, com 20 livros que estão na lista. Os que eu votei estão aí, com outros 10 em que eu votaria tranquilamente — totalmente fora de ordem, misturados, jamais saberão quais são so “meus”.
É uma lista plural, acho. O mais espantoso, pra mim, foi ver que são esmagadoramente da Companhia das Letras, o que, claro, diz muito sobre distribuição, alcance nacional, visibilidade — um livro só pode ser votado numa lista dessas se ele for lido e, a despeito do hercúleo e meritório trabalho das editoras pequenas, distribuição conta.
Bom, o fato é eu adoro listas, com sua superficialidade e sua representação, sua fugacidade e sua permanência, suas imensas falhas e seus muito méritos. Se um polonês, ou um extraterrestre, ou simplesmente um não leitor me perguntasse: afinal, o que é o Brasil?, dar a ele esta lista seria um excelente começo.
P.S. O Yuri Al’Hanati, meu amigo polemista, lançou a pergunta: “Se a lista fosse dos melhores livros dos últimos cem anos, quantos do século 21 apareceriam?”. Estou com preguiça de responder isso, dissertem vocês. / Outra pergunta até que nem tanto esotérica assim: “Quantos desses se manterão na lista final cut do século 21?” / Ou ainda: “Como será essa lista final-finalíssima-vale-este?” Eu sinceramente acho que vai ser uma lista ainda mais vária, ainda mais consistente, com prosas deslumbrantes, poesias fenomenais, em formas mirabolantes, construções novidadeiras, pra gente atravessar o século embasbacados e felizes, deslumbrados e exaltatórios, caindo nos parágrafos de espanto em espanto.
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cardápio da semana
20 livros brasileiros
Uma lista aleatória, fora de ordem e idiossincrática, mas juro que são todos bons.









Hoje A Lábia tá diferente, fiquem com esse mosaico em que só cabem 9 livros, perdão aos outros 11, vocês também são lindos.
Um defeito de cor, Ana Maria Gonçalves (Record, 2006)
Número 1 da lista, a busca de uma mãe por seu filho, de quem foi separada durante a escravização no Brasil é uma metáfora de um país sem memória, e que começou a amainar essa gigantesca lacuna só no século 21. A pesquisa exaustiva, a reconstrução do fluxo e do refluxo do tráfico negreiro, a compreensão profunda da nossa herança africana fazem que a busca seja também sobre nós todos, como país.
O avesso da pele, Jeferson Tenório (Companhia das Letras, 2020)
Um livro sobre a injustiça brutal do racismo estrutural, escrito com engenhosidade e repleto de afeto. A presença da MPB (Itamar, Luiz Melodia) que emoldura a relação entre pai e filho traz calor pra uma história tão dura. E ainda a importância da literatura no caminho dos dois protagonistas é uma bela homenagem ao ato de escrever, sem em nada parecer artificial. Um livro fundamental para entender o Brasil no começo do século.
Cinzas do norte, Milton Hatoum (Companhia das Letras)
A obra do Milton poderia estar toda nessa lista, e só não está porque os dois anteriores são de antes de 2001. Revolta, luta de classes, desencontros, num cenário que a literatura cria meio como o milagre que é um escritor que sabe escrever bem como o diabo. Literatura com consciência social, importante, fundamental, tudo nessa pena impecável do Milton. Imperdível.
O som do rugido da onça, Micheliny Verunschk (Companhia das Letras, 2021)
Se a história do Brasil está constantemente em falta com seu passado de violência e colonização brutal, são livros como este que podem ajudar a botar nosso imaginário do prumo. Sem apelo fácil a qualquer sentimentalismo, consegue de um jeito comovente ajudar a aparar as arestas da mentira histórica que durou 500 anos.
O amor dos homens avulsos, Victor Heringer (Companhia das Letras, 2016)
Romance de formação da vida miúda, passado num subúrbio do Rio de Janeiro, mostra a gigantesca força narrativa de um autor que era uma grande promessa da literatura. Terno e contundente, é testemunho de uma geração que começa a entender a sexualidade como uma possibilidade de estar no mundo, mas reconhecendo o que há de violência nisso. Adoro esse.
Via Ápia, Geovane Martins (Companhia das Letras, 2022)
É sempre impressionante ver o surgimento de uma nova voz na literatura – o que Geovani fez desde O sol na cabeça – que vai além de um único livro. Neste romance, desenha um Brasil urbano à margem, fora da promessa de país do futuro. Para contar essa história, a linguagem colhida nas ruas e filtrada por uma gigantesca capacidade de invenção. Tráfico, milícia, a esperança na educação, uma frágil redenção pela arte, a onipresença da religião – tudo muito bem concatenado num livro memorável.
Como se estivéssemos em palimpsestos de putas, Elvira Vigna (Companhia das Letras, 2016)
A partir do encontro de um homem e uma mulher, uma explosão de linguagem que tem tudo o que a melhor literatura promete: tensão, perversão, muito humor, crueldade, inteligência, um magnífico sentido de linguagem, o gozo pelas palavras. Literatura em estado bruto, sem concessões aos temas necessários, mas que relembra a crueza da própria humanidade.
Leite derramado, Chico Buarque (Companhia das Letras, 2009)
O mais machadiano dos chicos buarques, é um romance desses que falam do Brasil inteiro a partir da história de uma família com um passado meio obscuro, muito ódio no coração. Tem classismo, nossa elite cobiçosa, aquela autoimagem podrinha e equivocada e uma prosa belíssima, elegante, na cadência da melhor prosódia. Livro gostoso de ler, sabido e malemolente.
Eles eram muito cavalos, Luiz Rufatto (Companhia das Letras, 2001)
Um dos melhores panoramas de São Paulo, numa mistura louca de sotaques, cenários, brigas de família, conflito de classe, religião convicta, ódios destrutivos, poluição sonora e visual, uma loucura. Mas é um livro para entender a cidade se assustando o tempo todo, como essa cidade faz com a gente.
Pornopopeia, Reinaldo Moraes (Objetiva, 2009)
O Reinaldo é o escritor mais rock’n roll da literatura brasileira, e digo isso nem tanto pela certeira mistura de sexo, bebida e drogas, mas pela batida, pelo ritmo, pela vontade de loucura. Com toda a deliciosa loucurada, é das prosas mais elegantes deste país, tipo um Flaubert de som e fúria. Este Pornopopeia nasceu clássico e como é bom um clássico que faz a gente rir.
Ainda estou aqui, Marcelo Rubens Paiva (Objetiva, 2015)
O tenebroso período da Ditadura Militar, tão pouco representado na literatura brasileira, é retratado por suas nefastas consequências na esfera privada, mas também pela recuperação não apenas da protagonista como de todas as mulheres que ficaram, que lutaram e que ajudaram a construir a resistência. Além do livro sensível e monumental, agora ganha uma dimensão com a repercussão do filme baseado nele.
Budapeste, Chico Buarque (Companhia das Letras, 2003)
Uma história de amor, um delicioso tratado sobre a língua e uma bem-humorada reflexão sobre a criação literária e artística são a fórmula para a construção de um romance brilhante, fresco e inteligente, que consagrou o maior letrista do país como um romancista consistente, autor de uma obra profundamente brasileira - que se seguiria com Leite derramado, seu livro mais machadiano.
O livro das semelhanças, Ana Martins Marques (Companhia das Letras, 2015)
A inteligência da Ana é uma coisa espantosa. Ela tem esse dom da poesia de botar uma lente esquisita nas coisas simples, é refinada e simplona, afetuosa e malvadinha. Uma novidade na poesia brasileira, com um equilíbrio impressionante entre técnica, precisão e ternura.
Nove noites, Bernardo Carvalho (Companhia das Letras, 2006)
Das mais bem-sucedidas experiências de uma mistura de história, memória e ficção, com uma trama absolutamente envolvente. Thriller antropológico, suspense etnográfico, tudo misturado em monumento ao país desencontrado e confuso que somos.
O útero é do tamanho de um punho, Angélica Freitas (Companhia das Letras, 2012)
Poucos livros fizeram mais pro feminismo do que esta reunião de poemas bravos e furiosos, mas com técnica e ritmos brilhantes. Angélica tem um olhar estranhíssimo que, quando olha para o óbvio, torce as coisas com uma sabedoria malandra em cujo humor mal disfarça o tanto que ela está puta com tudo. Só poderia dar boa poesia. A dela é excelente.
O sol na cabeça, Geovani Martins (Companhia das Letras, 2018)
Um dos hypes mais justificados da literatura brasileira, este livro chegou explodindo estruturas de um jeito que não acontece quase nunca. Tem linguagem e conteúdo, tem alegria e revolta, tem todos os ingredientes dos deslumbramentos que a melhor literatura dá. Se não leu ainda, corre. É um susto.
O voo da madrugada, Sérgio Sant’Anna (Companhia das Letras, 2003)
Que contista chique é o Sérgio Sant’Anna. Aqui, ele experimenta a forma, faz mil filosofias e trata de sexo com a seriedade que isso merece. Os contos são todos meio alucinados e delirantes, e as personagens andam feito uns zumbis de desejos pela vida. Personagens e cenas inesquecíveis, daqueles livros de que dá saudade quando a gente fica muito tempo sem ler.
Noite dentro da noite, Joca Reiners Terron (Companhia das Letras, 2017)
Sempre fui muito certa de que o Joca é dos maiores escritores que nós temos, porque poucas vezes (no mundo, eu diria) surgem escritores com uma imaginação absurda, capazes de inventar histórias tão delirantes — buracos se abrindo no cérebro — e que ao mesmo tempo falam do mundo, esse a nossa volta, que nos empurra e emperra, com tamanha propriedade. Uns milagres que só a literatura faz. Eu botaria na lista todos os livros do Joca escritos depois de 2001. Aliás, de antes também.
O que ela sussurra, Noemi Jaffe (Companhia das Letras, 2020)
São incontáveis as coisas que aprendi com a Noemi sobre literatura e linguagem, nos seus textos, suas aulas, suas falas, seus livros. Militante da língua perfeita, erra escorreitamente nessa prosa só dela, que entra na cabeça de um jeito que a gente pensa que é nossa. Este é um livro lindíssimo, sobre guardar poemas como a lembrança mais cara, e é impossível lê-lo sem morrer de amor.
O paraíso é bem bacana, André Sant’Anna (Companhia das Letras, 2006)
Sempre fui deslumbrada com a cabeça doida do André, e suspeitava que aqueles incríveis Amor e Sexo, dois dos livros mais malucos e sonoros que dá pra imaginar, eram meio poesia também, porque aquilo ali é uma hipnose. Pois ele vem com esse catatau em que o ritmo não cai nunca, contando os dias moribundos de um jogador de futebol em Berlim. É engraçado demais, bonito demais, e um dos grandes (e poucos) livros que têm futebol como cenário, pra ganhar de vez meu coração.
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Pronto. Taí um’A Lábia comemorativa, atrasadinha e diferentona, mas com nada menos que VINTE dicas. Sejam bonzinhos e escolham pelo menos um desses livros. Também queria saber o que acharam da lista, das injustiças, das bobagens etc etc. Me falem. Beijo.
Servindo bem para servir sempre, botei links em todos os títulos dos livros de que eu falo aqui. Você jamais encontrará um link da Amazon: são todos caminhos para as editoras que fazem esses livros incríveis. Claro que você pode comprar na livraria mais perto da sua casa, compre livros de quem ama os livros, sempre. Se for comprar na Amazon, paciência, entendo, mas pelo menos faça isso com culpa. Pode ser uma militância nanica, mas é a minha militância.
uma lista é uma lista é uma lista. o que mais me desgostou foi a onipresença da Cia das Letras, mas como você disse, "é a distribuição, estúpido". na minha listinha pessoal, teria mais poesia e não haveria repetição de autor, pra abrir espaço pra mais gente, como a Fal Azevedo, a Maria Valéria Rezende, a Ana Paula Maia, a Carola Saavedra, mais mulheres que hominhos, já estamos bem servidas de hominhos ;)
Além da tua prosa porosa e saborosa, você me citar é coisa honrosa. Obrigada, minha rosa!🌹