Pressuposto de todos os assuntos, a língua é minha conversa preferida. Pra mim, assunto bom é palavra, léxico, sotaque, etimologia, metáfora, prosódia e, ouso dizer, até gramática, porque é bom conhecer as regras pra poder errar melhor. Mesmo sendo uma entusiasta da língua, ou talvez por isso mesmo, sei perfeitamente que um dicionário de fraseologia não vale a conversa com um parça indo de trem até Barueri para assistir um jogo de futebol, assim como não tem manual de redação que valha “um suspiro de moça enamorada”, pra roubar o verso do Bandeira. Aliás, os livros dest’A Lábia ensinam que roubos são preciosíssimos no processo de construção da língua, assim como sequestros, raptos, presentes, pilhagens, heranças, estelionatos.
No documentário 171, do Rodrigo Siqueira, os protagonistas são seis pessoas que cumprem pena por motivos diferentes, mas todas enquadradas no artigo 171 do código penal: estelionato, furtos e golpes financeiros. São golpistas brilhantes, que usam a palavra e a linguagem com a maestria de um Flaubert para produzir golpes precisos, até inverossímeis, mas de uma esperteza bizarra. Uma das personagens, gênia dos golpes com disfarces, responde à pergunta do Rodrigo: “a aparência é o mais importante, né?”. E ela: “Não, o mais importante é a fala, porque com a fala a gente cria qualquer coisa”. (Cito de cabeça, então vão lá ver o filme e venham me corrigir depois). Mas a questão é precisamente essa: a linguagem é invenção ou, como diz o Caetano na frase que já usei na semana passada, lança mundos no mundo, e nada, imagem ou dinheiro, desenho ou construção, é capaz de um exercício tão gigante de criação do mundo.
Amo história de maluquice, e uma das mais lindas é a de um sujeito que resolveu criar palavras no século 19. Qual um Policarpo Quaresma lexical e desvairado, achou que a gente, no Brasil, padecia muito do uso das palavras estrangeiras, naquela época muito mais o francês que o inglês. Ele não tinha lido os belos livros que est’A Lábia recomenda, e ainda acreditava no idílio inverossível de uma língua pura. Pois este Antônio de Castro Lopes (1927-1901), filólogo e latinista, resolveu usar o conhecimento adquirido em anos de estudos e inventar palavras a partir das formações tradicionais. Então escreveu um livro com o belíssimo título de Neologismos indispensáveis e barbarismos dispensáveis em que ele propunha substituições para palavras “estrangeiras” que estavam ali, felizonas, boiando entre cafunés e saudade. A lista é linda e inútil, porque praticamente nada vingou, mas deixarei aqui para vossa apreciação: Em vez de abajour, lucivelo. Em vez de avalanche, runimol. Para que usar chaffeur, se juntando um prefixo e um sufixo temos cinesífero? Pince-nez ele queria substituir por nasóculos, o que, se tivesse sido adotado, seria inútil, posto que que nem um nem outro existem mais. Futebol, essa palavra tão brejeira e lépida, com seus 44 pés correndo de lá pra cá, Castro Lopes julgou por bem substituir por ludopédio. São muitos os vocábulos que ele queria enfiar a soco no dicionário brasileiro, mas aparentemente o Caldas Aulete (e depois do Aurélio e o Houaiss) ignorou com a dignidade de quem sabe que a língua é móvel essas intrusas criadas em laboratório. Mas nem só de derrotas viveu o amigo, e milagrosamente emplacou pelo menos quatro palavras que eu aposto que você usa ou já usou: convescote, para substituir piquenique; calçada, para dispensar boulevard; estreia, que explosivamente delegou debut apenas às festas de quinze anos; e o onipresente cardápio, que não eliminou o menu, mas temos que concordar que bate um bolão — inclusive figura majestosamente em cada uma destas newsletters (carta de notícias?). (De repente me lembro de outras maravilhosas: turista viraria ludâmbul; reclame, preconício; e cachecol, focale.)
A saga de Castro Lopes é divertida e curiosa, e eu mesma paguei um bom dinheiro no exemplar do seu raro e inútil Neologismos indispensáveis e barbarismos dispensáveis. Que fique claro, muito mais pela gandaia linguística do que pela convicção lexical. É isso que é delicioso na língua: a farra. E dicionários, acreditem, são parques de diversões pra quem tem o pendor da palavra. Uma vez perguntaram para o Leminski qual era o seu livro preferido, e ele, que já disse que a poesia é “a liberdade da linguagem”, respondeu: “O dicionário. O resto não é só combinação?”.
Uma das coisas mais lindas da linguagem é que, quando a gente cai nela de peito aberto e ouvidos idem, ela é democrática e igualitária. Sabendo ouvir, há beleza em todos os sotaques, todas as gírias, todos os léxicos. Que bela declaração de afeto é quando você rouba uma palavra de alguém, um jeito de falar. Ou quando roubam de você. Eu tenho uma lista de palavras que roubei porque achei bonitas, e fico emocionada quando ouço um amigo usar, com propriedade de dono, uma palavra que era “minha”. Veja bem, palavras estão todas no mundo, mas cada pessoa tem as suas preferidas. De repente, num encontro de amizade, ou amoroso, ou de mãe e filho, uma pessoa começa a usar uma palavra que está no Top 10 da outra. Quando você vê, está compartilhando esse mini glossário amoroso, numa contaminação de afeto que é bonito demais ver acontecer.
Hoje falo de livro sobre palavras, sobre juntar palavras em frases, sobre entender que a língua é múltipla. Fica como dica, claro, mas também como declaração de amor à língua e a tudo que a gente pode fazer com ela. O Rosa, que talvez seja o autor que mais ousou nessa seara, dizia que “o povo é o inventa-línguas”, e o que há de grandeza nesse epíteto me faz tremer a cada esquina, a cada gíria nova, a cada vez que um adolescente como meu filho, que tem à sua frente todos os estrangeirismos do mundo, usa com informalidade e galhardia uma palavra tão bonita e espectral quanto convescote.
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cardápio da semana
o mais mais
Um preferido da semana, aquele que dá pra indicar para todo mundo
Como aprendi o português e outras aventuras, Paulo Rónai
Edições de Janeiro, 264 pp
Paulo Rónai era um filólogo húngaro genial, que vivia lá em Budapeste se divertindo horrores com seu trepidante grupo de filólogos, desfrutando com alguma pachorra o fato de ter escolhido uma língua vulgar como o português (seus colegas estudavam línguas extintíssimas e dialetos raríssimos). Quando a guerra explodiu e o nazismo o pegou no contrapé, ele, que era judeu, armou uma fuga: obcecado pelo português, arranjou um esquema para vir para o Brasil e aí foi tudo espanto, desde o contato com uma língua de que ele conhecia profundamente as regras, mas nunca tinha ouvido, até entender o tanto que uma língua não é só uma língua: é uma cultura, um pensamento, um modo de ser, um povo. Nos ensaios deste livro, ele conta todo esse caminho, o maravilhamento e a alegria, sem deixar de falar da tristeza que é deixar sua terra pra trás. Em menos de um ano no Brasil, já estava colaborando com a editora Globo de Porto Alegre, revisando as traduções e escrevendo as notas da monumental edição de A Comédia Humana do Balzac, e publicando os ensaios que ia escrevendo sobre língua, tradução, literatura e leitura. Rónai é um gigante e está pra nascer um brasileiro que escreva em português tão bem quanto ele, com generosidade e inteligência, e sobretudo com uma paixão rara, dessas que faz a gente querer ler tudo, porque tudo tem interesse. Paulo Rónai é meu herói, porque ensina que os livros são a matéria viva do conhecimento humano, que linguagem existe porque o ser humano precisa dividir a experiência, e que generosidade no saber pode importar mais do que o saber.
O exercício de concisão me é impossível quando a conversa é sobre o Rónai. Deixo só mais uma historinha, uma dica e um apelo:
A historinha: Quando eu trabalhei numa reedição de A Comédia Humana, a gente fez um lançamento com a presença da Cora Rónai, filha dele. Ela contou que no sítio Pois É (esse nome!), refúgio da família onde ficava a biblioteca, eles tinham um jabuti (o bicho, não o prêmio) que Rónai, grande fã de jazz, batizou de Quelonious Monk. Minha única opção é amar este homem loucamente.
A dica dentro da dica: Tem uma biografia excelente do Rónai escrita com devoção pela Ana Cecilia Impellizieri Martins, publicada pela Todavia — O homem que aprendeu o Brasil. A Ciça, pesquisadora e editora que reeditou o Como aprendi português, fez um livro comovente, porque reconstitui a desgraça que foi a vida durante a guerra e narra cheia de elegância a construção da vida no Brasil.
O apelo: o livro, acho, está esgotado, mas dá pra achar em sebos e na Estante Virtual. O apelo eu jogo pro universo, e peço que a gente não deixe esse livro morrer — e confesso que eu mesma posso ter sido responsável por esgotar a edição, posto que comprei uma quantidade de atacarejo pra dar de presente pra todo mundo que merecia ler este livro.
Essa foto, que está na capa da biografia, mexe particularmente com meu coração: o Rónai num campo de trabalho da ocupação nazista, enquanto esperava um possível transporte para o Brasil, LENDO. Qual é a sua desculpa?
o mais mais 2
Outro preferido da semana, aquele que dá pra indicar para todo mundo
Latim em pó, Caetano Galindo
Companhia das Letras, 232 pp
Como tudo nessa vida é equilíbrio, depois de um livro esgotado, vamos de best-seller, este livrinho do Galindo em que certamente você já tropeçou por aí. E faz todo sentido emendar um livro no outro, porque o Galindo é um intelectual da mesma raça que o Rónai: uma inteligência alegre, uma erudição fresca, que prova a cada linha que o estudo, a história e a literatura não vieram ao mundo para humilhar ninguém. Nesse ensaio, o Galindo conta a história da língua portuguesa como nós falamos hoje, e como falamos com seus mils desvios e meandros: a origem no latim, o caminho que fez durante o colonialismo, as caudalosas contribuições africanas e indígenas e cada caquinho que foi se pregando num corpo sempre meio indefinido para criar esse todo orgânico e mutante, rico e vivo. Nesse ensaio que é um passeio (como muito apropriadamente está descrito no subtítulo no livro), a gente aprende um tanto de coisa e desaprende outras, porque pensar a língua é assim mesmo, um vai e vem, uma dança, com direito à celebração da música, tão cara a nós brasileiros, e também à poesia, esse delírio da linguagem. Pra nossa sorte, o Galindo não para de pensar coisas novas, e acabou de lançar o Na ponta da língua, livrinho irmão desse que é um exemplo de etmologia viva aplicado às partes do corpo, ensinando de onde vêm as palavras, como um imenso chá-revelação da língua, sem a parte do sexismo e da cafonalha, mas que vai ensinando um pouco mais como é que a gente veio parar aqui.
passou batido
Uma pérola em que quase ninguém prestou atenção
Assim nasceu uma língua, Fernando Venâncio
Tinta da China, 304 pp
Já esse aqui é uma excelente continuação para o best-seller do Galindo: mais vetusto que o Latim em pó, como se espera talvez imprudentemente de um senhor português, ainda assim mantém o espírito de passeio, e se aprofunda na questão da formação da língua com um rigor de estudioso, mas um espírito ranzinza meio engraçado no seu engajamento de derrubar mitos que para um filólogo como ele devem ser de fato irritantes. Na narrativa que ele vai tecendo também da construção da língua, ele faz quase um romance épico, investigando as fontes, desviando de obstáculos e com vários turning points (desculpe o barbarismo, professor) meio que estarrecedores. Mas não estraga surpresa nenhuma (ou spoilers, como se diz em brasileiro) dizer que o livro tem o ânimo dos apaixonados (aliás, como são apaixonados os filólogos e etnólogos!) e que a leitura é uma exortação a essa língua louca, tão múltipla, que inventamos e aprendemos todos os dias.
são nossas coisas
Um brasileiro realmente bom, pra gente ter algum orgulho nessa vida
Neca, um romance em bajubá, Amara Moira
Companhia das Letras/ 120 pp.
O que Amara Moira faz nesse livrinho é um espanto de invenção linguística. Leitora profissional de James Joyce, ela entendeu que só com o reconhecimento da criação de uma língua nova era possível falar com verdade sobre o universo das travestis, com seu brilho, seu humor, sua ironia, sua dor, seus riscos. A história de uma travesti que reencontra um antigo amor é toda contada em bajubá, a língua das bichas, e o livro tem uma estrutura similar à de Grande Sertão: Veredas, porque é um longo monólogo, absolutamente oral, hipnotizante. E como é corajosa a língua escrita com todos seus sons, porque constrói um cenário inteiro, um mundo inteiro, pelas palavras. E tem muito também da prosa do Leminski no Catatau, brincadeira seríssima com o que viemos a ser nesse país torto, tudo descrito com erudição e malícia, cantada literária no melhor grau. Amara ainda enfia no livro várias referências literárias, sem pedantismo, sem forçar a barra, mas é sublime ao falar dos autores, porque fala de representatividade, de sofrimento, de criação. Hilário e trágico, afirma em cada gíria uma vida que se afirma e pulsa, e também é alegria e resistência. Esse livro tem uma língua inteira, e como a gente viu até aqui, uma língua é um mundo inteiro.
para não dizer que não falei de poesia
La Divina Increnca, Juó Bananére
Editora 34/ 72 pp
Juó Bananére, pseudônimo de Alexandre Marcondes Machado (1892-1933), foi uma espécie de precursor do modernismo mais pândego, antevendo um Adoniran Barbosa, com o talento pra galhofa de um Barão de Itararé. Começou escrevendo uma coluna em O Pirralho, revista de sátira do Oswald de Andrade, para pintar uma cidade que se pretendia moderna e cosmopolita (como hoje), mas que era repleta de desigualdade (como hoje), numa população que se desenhava plural, miscigenada e bem ou mal acolhedora de uma leva gigantesca de imigrantes. Nascido na colônia italiana, Bananére inventa uma língua riquíssima e sacana, que mistura a Mooca, o Vêneto, um oceano inteiro e, como seu palco era a escrita, vem junto toda uma gramática exuberante e confusa, que a gente tem que ler em voz alta pra conseguir entender tudo. Mas entende. Além das crônicas, ele pegava os poemas que faziam sucesso tanto na panela literária como nas páginas dos jornais e fazia paródias hilárias — e entravam no balaio Machado de Assis, Olavo Bilac, Álvares de Azevedo, com seus poemas mais célebres. A edição da 34 é um fac-símile da edição original, de 1915, com ilustrações do Voltolino, outro clássico da Pauliceia que frequentou muito as páginas de O perfeito cozinheiro das almas deste mundo (informem-se), e prefácio do Otto Maria Carpeaux, outro gringo (esse austríaco) que sabia tudo de Brasil e de linguagem no Brasil.
Para terminar A Lábia, fiquem com um dos poemas, que é muito meu querido. E se não entenderem nada, leiam em voz alta, que a linguagem explode.
SODADES DE ZAN PAOLO
Tegno sodades dista Paulicea,
Dista cidade chi tanto dimiro!
Tegno sodades distu céu azur,
Das bella figlia lá du Bó Ritiro.
Tegno sodades dus tempo perdido
Xupano xoppi uguali d’um vampiro;
Tegno sodades dus begigno ardenti
Das belas figlia lá du Bó Ritiro.
Tegno sodades lá da Pontigrandi,
Dove di notte si vá dá un giro
I dove vó spiá come n’un speglio
As belas figlia lá du Bó Ritiro
Andove tê tantas piquena xique,
Chi a genti sê querê dá um sospiro,
Quano perto per caso a genti passa,
Das belas figlia lá du Bó Ritiro.
Tegno sodades, ai de ti – Zan Paolo!
Terra chi eu vivo sempre n’um martiro,
Vagabundeano como um begiaflore,
Atraiz das figlia lá du Bó Ritiro.
Tegno sodades da garoa fina,
Agitada co sopro su Zefiro,
Quano io durmia ingopa o collo ardenti
Das belas figlia lá du Bó Ritiro.
Servindo bem para servir sempre, botei links em todos os títulos dos livros de que eu falo aqui. Você jamais encontrará um link da Amazon: são todos caminhos para as editoras que fazem esses livros incríveis. Claro que você pode comprar na livraria mais perto da sua casa, compre livros de quem ama os livros, sempre. Se for comprar na Amazon, paciência, entendo, mas pelo menos faça isso com culpa. Pode ser uma militância nanica, mas é a minha militância.
Ah, querida. Que emoção encontrar o meu Pai aqui, junto a essa linda declaração de amor à língua. Ele ia se sentir absolutamente em casa, não havia nada de que gostasse mais do que uma boa conversa sobre dicionários e etimologias. À exceção, talvez, dos dicionários em si. Uma vez gastou os tubos numa gramática portuguesa do Xironga, Mamãe ficou indignada com aquele desperdício, ele concordou, mas fez uma observação importante, "A gente nunca sabe quando vai precisar de uma gramática Xironga". Isso virou piada interna nossa e, até hoje, cada vez que alguém faz uma compra extravagante na família, a gente fala na Gramática Xironga. "Como aprendi o português" é o meu livro favorito dele, o mais pessoal, aquele no qual eu melhor ouço a voz dele.
A história do Paulo Ronai com a língua portuguesa me emocionou. Essa “carta de notícias” inteira é um caso de amor com a língua, aliás