Manuel Bandeira, meu herói particular, pouco depois de fazer 50 anos, juntou o mel do melhor da sua poesia, madura e maturada, sentimental na medida certa, aquele cozimento no ponto, macio e tenro, temperatura perfeita, no livro Lira dos Cinquent’anos, um livro melancólico que é uma ode à solidão, com cara de testamento, tão terno quanto lírico. Quando os casais longevos alcançam a marca de 50 anos de casamento, eles ganham a medalha de ouro em convivência, o sumo do sumo das festas de enlace que são as Bodas de Ouro. Em português a gente tem até uma palavra bonachona e amiga só para designar os 50 anos de algo ou alguém, que é jubileu, e que aparentemente virou gíria de alguma coisa, mas como estou bem mais perto das minhas bodas de ouro pessoais que das bodas de prata, eu ainda não absorvi qual é — e provavelmente só vou descobrir quando já for cringe demais. O Nelson Rodrigues quando queria dizer um chavão muito chavão mesmo botava na boca de uma vizinha patusca e machadiana, com um colar de brotoejas: “Cinquenta anos não são cinquenta dias.” Acontece que a vizinha tinha, sempre ou quase sempre, razão.
Pois bem. Este ano completamos o jubileu de 1975, belo ano se não redondo ao menos estético, em que o Brasil e o mundo viveram momentos fundamentais. No Brasil, enquanto a Ditadura Militar comia solta, de um lado da Dutra, o estado da Guanabara tão simpaticamente ditatorial deixava de existir no Rio de Janeiro, e, de outro, em São Paulo, um milhão de brasileiros, no equilíbrio tênue da coragem e do medo, ocupavam a praça da Sé na missa ecumênica em homenagem ao jornalista Vladimir Herzog, assassinado na cadeia por agentes militares — na minha mitologia familiar, foi o primeiro dos muitos atos políticos do meu irmão mais velho, também ele completando seu glorioso jubileu neste 2025. Dando um google rápido, vejo também que foi o ano da assinatura do acordo nuclear com a Alemanha Ocidental, a invenção da primeira câmera fotográfica digital e do início do genocídio cambojano. Morreram Murilo Mendes e Pier Paolo Pasolini, a Hannah Arendt e o Érico Veríssimo — e a simples enumeração desses nomes me dá um suspiro ancestral, criando coincidências mirabolantes capazes de produzir teorias inéditas.
A música no Brasil estava num ano bizarramente inacreditável: neste mesmo ano, Caetano Veloso lança dois discos, e não quaisquer discos, mas o Joia e o Qualquer Coisa — e só esses dois discos valiam um’A Lábia inteira. Mas teve mais. O Gil lançou Refazenda e o Gil & Jorge, com o Jorge Ben, que também lançou o seu Solta o pavão. Teve o Minas, do Milton, Clarear, da Clara Nunes, o Fruto proibido, da Rita Lee, o Tim Maia Racional (read the book!), aquele do Di Melo, o Novo Aeon, do Raul Seixas, o Lugar comum, do João Donato. Essa lista que eu faço numa pesquisa rápida me mostra um país louco, lindo, dançante, cheio de poesia e maluquice, de promessas de felicidade e de vontade de respiro, de criação e encanto, de inspiração, referência, estudo, e sei lá mais o quê. Que país absurdo.
E o absurdo vem também nos livros, claro. Outro lugar comum digno de vizinha patus do Nelson é dizer que os livros são retratos do que a gente vive, nem tanto pelos temas, mas pelo que eles trazem de vida das palavras, de vontade de inventar, de criação da linguagem. E os livros de 1975 são assim, elásticos e experimentais, profundos e explosivos. Fui escrevendo uma lista e um’A Lábia só não daria conta. Mas pensando nisso, nesses livros cinquentões, entendi que eles tinham em comum a esperança de um país que se sente seguro da sua língua, que abraça a narrativa com uma força impressionante, de juventude de pensamento, cabelo ao vento gente jovem reunida. A gente olha essa safra literária, cola ela num contexto de ditadura, e entende perfeitamente que a literatura é, pra usar a expressão do Maiakóvski, um jeito de arrancar alegria do futuro.
Impossível saber o grau de consciência desses autores, se eles entendiam que estavam fazendo livros eternos, porque inauguravam uma coisa nova. Nem sou, a essa altura vocês já sabem, crítica literária pra apontar semelhanças e aproximações, nem nada disso. Vim aqui, com um atraso de dois dias (desculpem!) comemorar o aniversário de 50 anos desses livros cheios de vida, nascidos com toda força criadora no meio das trevas inomináveis que foram os anos da ditadura. Demorei para botar ess’A Lábia de pé porque é difícil demais escrever alguma coisa inteligente sobre esses livros que são, aos cinquenta anos, clássicos absolutos. E escolhi cinco dos meus indubitáveis, mas a lista vai longe, segue lá no fim. Enfim, Dá uma olhada, escolha o seu cinquentão, e comemoremos juntos.
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cardápio da semana
Lavoura arcaica, 50
Lavoura arcaica, Raduan Nassar
Companhia das Letras/ 200 pp
Que narrador louco e lindo é o André, quando conta a história dessa família que é única e ao mesmo tempo é um pouco o retrato de todas as famílias infelizes, já cantava Tolstói. O pai duro e intransigente, a mãe presa de um amor absurdo, os irmãos, a casa, o terreno, as árvores: tudo tem um quê de sagrado e o enlouquecimento claustrofóbico da história é tecido linha a linha numa linguagem perfeita, justamente porque se deixa alucinar. A história vira do avesso duzentas vezes, se desdobra em reviravoltas terríveis, é angustiante e dolorido, mas é muito impressionante o deleite das palavras. Como o Raduan soube escolhê-las e juntá-las, para pintar esse quadro assustador e doente do desejo e da capacidade da vontade. Um monumento literário que, lido 50 anos depois, é precisamente perfeito.
Catatau, 50
Catatau, Paulo Leminski
Iluminuras / 256 pp
“Duvido se existo, quem sou eu se esse tamanduá existe?” E se o filósofo Descartes não tivesse passado a vida inteira numa Europa asséptica? E se ele tivesse embarcado na excursão de Maurício de Nassau, vindo parar no meio da selva barroca de Pernambuco? E se na modorra calorenta e cheia de mosquitos do Nordeste brasileiro ele tivesse fumado maconha? É desses delirantes pressupostos que nasce o tal do romance-ideia do poeta Paulo Leminski, seu único romance, seu primeiro livro e, arrisco dizer, sua obra prima. Intoxicado pelo absurdo da natureza brasileira, Descartes jorra sua invenção de linguagem nessa fórmula que atordoa razão e emoção, e que o próprio Leminski iria sintetizar tão bem quando se autodescreve: capricho e relaxo, bandido que sabe latim, samurai malandro. Num texto totalmente exuberante, quase feito pra ler em voz alta, a gente encontra poesia e filosofia, o pensamento mais fino e o humor mais surpreendente. Leminski, de olho na antropofagia de Oswald de Andrade e de ouvidos na Tropicália de Caetano, come páginas e páginas de novelas satíricas, relatos de viajantes, cartas de navegação e cospe com malemolência e leseira um retrato da natureza exótica, mas um exercício finíssimo da mais alta literatura. Um tanto hermético, é verdade, mas tão cheio de finuras que convidam à leitura de novo e de novo. Tem cinquenta anos, mas que frescor insuperável essa farra da linguagem.
Poema sujo, 50
Poema sujo, Ferreira Gullar
Companhia das Letras / 112 pp
Talvez dos livros de 1975, este seja o que tenha os pés mais calcados no Brasil desgraçadamente sob o governo espúrio do Geisel. Gullar estava exilado na Argentina e, como todo cidadão brasileiro que tinha algum juízo, tinha medo de morrer, medo de esquecer, medo de ser esquecido, medo de não voltar do Brasil, de que nem houvesse mais Brasil. O Poema sujo é um longo poema narrativo, que parece ter nascido de uma convulsão inesquecível, ritmada, impressionantemente marcado pela força dos versos que são pura música e movimento, com a contundência de um “testemunho final”. Escrita automática, pura experiência subjetiva, umas imagens inesquecíveis fazem deste poema um manifesto que é preciso que a gente não esqueça nunca.
Feliz ano novo, 50
Feliz ano novo, Rubem Fonseca
Nova Fronteira/ 184 pp
(E botei aqui a capa da primeira edição, a de 1975, da Artenova, que, se não é bonita, pelo menos tem a desculpa dos 50 anos — as capas atuais, da Nova Fronteira, são intoleráveis.)
Proibido e recolhido em todo território nacional por ser “contrário à moral e aos bons costumes”, Feliz ano novo é uma coleção de contos brutais, crus e violentamente desgraçados, e sem exagero nenhum dá pra dizer que revolucionou a literatura brasileira. Violência, drogas, taras sexuais e conflito de classes são retratados de um jeito inédito e Rubem Fonseca, à sua própria revelia, inaugurou assim uma multidão de imitadores, uns mais uns menos bem-sucedidos, nisso que se costumou chamar de literatura urbana brasileira. Só pra dar um gostinho do que são esses contos: “Feliz ano novo” é a história de três amigos marginais, muito fodidos, que resolvem dar a forra no mundo. “Corações solitários” é uma pérola que eu deveria ter citado na últim’A Lábia, sobre cartas, porque é a história de um ex-repórter de polícia que arranja um emprego para responder cartas de mulheres num jornal feminino. “Passeio noturno” I e II são absurdos de construção sobre a doencinha de um personagem que gosta de sair à noite para atropelar pessoas anônimas. “Dia dos namorados” é uma aparição brilhante do detetive Mandrake com perversões sexuais, chantagens, mentiras e terríveis revelações. “74 degraus” é um primor de narração que conta os 74 passos de um assassinato articulado por duas mulheres. E isso é só um aperitivo. Vão por mim, peguem imediatamente.
Confissões de Ralfo, 50
Confissões de Ralfo, Sérgio Sant’Anna
Relume Dumará / 280 pp
Estou chocada ao ver agora que este livro está esgotado, sumido, fora de catálogo — talvez o único da lista dos 50 anos que não tenha uma edição recente decente. O Sérgio Sant’Anna é um mestre bizarro do conto, esse gênero que vivia ali seu momento de glória nos anos 1970 (vide o Rubem Fonseca), mas que hoje é o terror dos editores e o terror ainda mais terror dos próprios contistas, que amargam dificuldades inauditas para publicar seus continhos. Mas este livro é um romance, ou melhor, uma “autobiografia imaginária” e um próprio Sérgio Sant’Anna, advogado como o autor, mas, ó, quanta diferença. Em delírios formais e factuais, o personagem-narrador, à moda de um Serafim Ponte Grande (vejam só, o Oswald de novo!), cria o próprio autor, que cria a si mesmo, numa construção intrincada que foge dos formalismos, como se tentasse edificar toda uma literatura da liberdade, nos doze capítulos em que tudo é possível, e ele mesmo é ora amante de estrelas de televisão, ora um viajante que atravessa o oceano, ora fundador e vítima de um novo regime ora um mendigo torturado pela polícia num interrogatório inacreditável. E ainda: vagabundo em Paris, amante da Alice de Lewis Carroll, enxertada no corpo da Lolita de Nabokov ator de espetáculos sadomasoquistas e mais um mar de invenções bastante inacreditáveis. Pra mim, que já passei uns anos fissurada nesse livro, segue misterioso e louco, mas d eum jeito bom.
E não é só isso, amigos. Na lista dos prêmios de 1975, os atarefados jurados ainda tiveram que ler Zero, o romance mais perturbardo do Ignácio de Loyola Brandão, Galvez, o imperador do Acre, do Márcio Souza, que conheceu lá seu apogeu e hoje impera impávido nos sebos do país, O ovo apunhalado, do Caio Fernando Abreu (que eu não li), o Museu de tudo, do João Cabral de Melo Neto, o Beijo na boca, do Cacaso, que parece que foi escrito num universo diferente do Museu de tudo, a peça Gota d’Água do Chico Buarque com o Paulo Pontes. E Roberto Drummond, antes da HIlda Furacão, estreou com A morte de D.J. em Paris (não faço ideia do que seja), Dalton Trevisan chegou também ele aos 50 anos com A faca no coração (dos meus preferidos). E 1975 ainda gestava lindamente o Bagagem, da Adélia Prado, livro que me parece melhor cada vez que eu leio e que seria lançado no comecinho de 1976, mas aí a gente deixa pro ano que vem.
Eu olho esse conjunto polifônico e explosivo e não sei muito bem o que pensar. Dá pra enxergar uma geração, mas não ouso arrancar disso grandes conclusões — é, sim, um conjunto vário, com uma imensa vontade de comunicação e com um trabalho de linguagem hercúleo e criativo. É isso. Viva a literatura brasileira, viva esses livros maravilhosos. E deixo aqui também meu beijo para os meus amigos de 1975, que, como os livros de que falei, estão quase todos exuberantes, brilhando por aí cheio de ideias e de vontade de criação. Vão indo na frente, queridos. Já já eu chego aí.
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Servindo bem para servir sempre, botei links em todos os títulos dos livros de que eu falo aqui. Você jamais encontrará um link da Amazon: são todos caminhos para as editoras que fazem esses livros incríveis. Claro que você pode comprar na livraria mais perto da sua casa, compre livros de quem ama os livros, sempre. Se for comprar na Amazon, paciência, entendo, mas pelo menos faça isso com culpa. Pode ser uma militância nanica, mas é a minha militância.
Por muito tempo, Jubileu foi para mim marca de café popular lá das terras de Catatau - que, por sua vez, ainda era apenas o acólito pertinaz do Zé Colmeia. Hoje, em meu próprio jubileu já beirando uma boa ideia bem mais água do que ardente, sei que café e cachaça cabem no mesmo copo americano em qualquer boteco desse país. É só pedir que tem. A gente se torna menos exigente e mais rabugento, mais rugoso e crocante, menos flexível, mas abrir mão de um bom livro se torna cada vez mais difícil... e você tem tronado essa tarefa mais fácil com sua Lábia, companheira. Obrigado por isso e desculpe o devaneio. É a moda pré-outono/inverno que anda pintando por aqui.
Que ano, que ano! (E olha que eu só nasci no seguinte!)