“Meus leitores são uma seita, uma espécie de KGB secreta”, se lamentava Hilda Hilst, quando falava demorada e reiteradamente sobre a impopularidade dos seus livros. Apesar da inabalável convicção da qualidade do que escrevia, ela tinha uma ânsia de ser lida e compreendida que, não tenho dúvida, nunca saciou. Queria mais escuta, mais público, mais leitura, e aparentemente nunca achou leitor que chegasse à altura da sua ambição. Não duvido que esse seja o sentimento de vários escritores (da maioria?), mas imagino que para alguns essa brisa bate mais forte.
Por mais que a gente pregue com o ímpeto de um pastor da Praça da Sé as alegrias da leitura, por mais que haja aqui e ali conversões que são genuínas epifanias, é muito difícil extrair da vida cotidiana o mel da atenção leitora que só é dada a um restrito círculo de malucos devoradores de livros que, como a KGB da Hilda, se comunicam misteriosamente, caminham de olhos baixos por corredores de sebos, trocam volumes encardidos de editoras extintas, pronunciam intrincados sobrenomes em línguas estrangeiras. São os leitores obsessivos, aqueles para quem um livro invariavelmente levará a outro livro, num esquema de pirâmide vicioso e amigo. Os membros dessa KGB, com suas vistas cansadas e sua rinite de pó, elegem seus favoritos, e vão atrás dos favoritos do favoritos e assim por diante, numa cadeia infinita, antiga, idiossincrática e amável.
Eu, ainda que leitora bastante orgulhosa das minhas horas de leitura, não faço parte dessa silenciosa organização (sou barulhenta e divulgadora, como vocês sabem), mas tenho por ela uma admiração profunda e a conexão com alguns excelentes amigos que conquistei seguindo uma pista ou outra, com quem troco whatsapps como se fossem cartas amarelas, num intercâmbio de dicas, admirações e lamentos por este mundo que, ó, jamais desvendará os insondáveis deleites da leitura erudita. Nas mensagens, nos damos piscadelas recíprocas, geralmente me desculpo pela falta de empenho, e sempre saio com um ou outro nome de autor anotado, que provavelmente vou encontrar por dois tostões na estante virtual (invariavelmente são dicas preciosas, acreditem).
Acontece que alguns desses leitores, tão raros quanto aqueles que vão compreender a obsoleta metáfora da KGB, dão o salto no escuro de virarem escritores. Não é um caminho necessário nem óbvio, mas quando acontece é um deleite para nós, os embasbacados admiradores deste modo de vida. Porque grandes leitores são capazes de grandes literaturas, e se cada um exerce sua obsessão de um jeito, há em comum o interesse renovado no que já foi escrito. Parece estranho, mas nem todo escritor é um leitor obsessivo, desses que traçam filiações e diálogos inimagináveis, da Hungria a Minas Gerais, do Piauí a um vilarejo espanhol. Quando esses leitores viram escritores, o resultado são livros que são verdadeiros compêndios da humanidade, nossa imensa fossa comum de dores e muito geralmente de desilusão, ainda que o próprio exercício da escrita já seja uma liçãozinha de felicidade.
Esses apaixonados montam não apenas bibliotecas com sua paixão, mas criam em seus livros, esses frankeinsteins literários, um mosaico cheio de anedotas que, ao juntar a cabeça de um com o braço do outro, uma orelha aqui ao pé de um monstro acolá, eis que temos adoráveis monstrengos malemolentes, que atestam com sua presença e sua voz dissonante a tara pela literatura, que, sim, é um modo de vida.
Os livros que estou indicando hoje são todos escritos por leitores vorazes, e às vezes é difícil dizer o que eles são: meio diários de leituras, meio compêndios de notas, meio listas de livros, são caleidoscópicos, e dão a impressão de que todos os livros do mundo são um só, mesma matéria de pensamento e estilo, prova inescapável e testemunhos certeiros de que fazemos parte da mesma humanidade.
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Todas as dicas de hoje, ainda que estejam entre as minhas preferidas, são difíceis de defninir em poucas palavras, e com sinopses por vezes confusas — difícil responder perguntas simples como “quem é o narrador?” e “que gênero é esse?”. Pra piorar, ess’A Lábia atrasou por conta daquela mistura gostosa entre imunidade baixa por ansiedade e outono em São Paulo — o que quase me levou a adquirir meu próprio Café com Deus Cozy para colorir e juntar dinheiro e conquistar o mundo. Não chegamos a esse ponto. Mas, por favor, relevem.
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cardápio da semana
o mais mais 1
Um preferido da semana, aquele que dá pra indicar para todo mundo
Bartleby e companhia, Enrique Vila-Matas
Tradução de Maria Carolina de Araújo e Josely Vianna Baptista
Companhia das Letras/ 184 pp
Bartleby, se você não sabe, é o personagem que dá título a uma novelinha do Herman Melville, o camarada que se derramou em centenas de páginas contando a história da Moby Dick. Econômico e mal-humorado, o Bartleby da novelinha não vive grandes aventuras, não encana com baleias, e as únicas milhas que ele percorre são entre as salas do escritório em Wall Street em que ele mantém um tedioso emprego de escrivão. Ele jamais é impetuoso, nunca seria tão caudoloso, e incapaz de uma obsessão. Ou, por outra, toda sua obsessão, que não é pouca, é dirigida ao firme propósito de não fazer nada. Com sua frase-lema, “Prefiro não fazer” ou “Acho melhor não” (as traduções divergem), ele responde ao mundo que o solicita e, assim, vai desaparecendo do mundo, pela escolha do silêncio, da imobilidade. Vila-Matas usa o escrivão como mote para escrever este romance (ensaio? crítica? crônica?) sobre a pulsão negativa, ou o labirinto do Não, ou, simplesmente, a impossibilidade da escrita. Mas tudo é paradoxo e, na busca incessante de pistas na literatura de personagens-bartleby, personagens que buscaram o silêncio, ele coleciona histórias de outros escritores que também se afirmaram pela recusa, numa reunião riquíssima e brilhante de excelentes histórias sobre literatura. É engraçado, inteligente, original e engenhoso, nisso de construir um livro engraçado e terno, que se agarra à ideia da impossibilidade da escrita para criar uma nova escrita.
o mais mais 2
Um preferido da semana, aquele que dá pra indicar para todo mundo
O perigo de estar lúcida, Rosa Montero
tradução Mariana Sanchez
Todavia / 272 pp
Se o mote do Vila-Matas para montar seu Frankestein é o Bartleby e sua pulsão do Não, a Rosa Montero, neste aqui, monta o seu pela loucura. Mestra em fazer esses livros-ensaios — de A louca da casa ao A ridícula ideia de nunca mais te ver —, ela sempre usa como esqueleto do livro uma questão pessoal e vai enfeitando com penduricalhos deliciosos: casos literários, anedotas curiosas sobre escritores, artistas e filósofos. Rosa é obcecada e estudiosa, e uma leitora fina e exigente, que faz uma curadoria impressionante dos seus próprios monstros. Neste livro, além das vidas literárias sempre um pouco fora do comum — de Sylvia Plath a Scott Fitzgerald, de Fernando Pessoa a Aldous Huxley, Rosa monta um elenco maravilhoso de doidos, bêbados, deprimidos, doentes, capazes de organizar as próprias desorganizações em criação, em literatura. Rosa faz com isso um jogo de livros dentro do livro, contando ao mesmo tempo uma história inacreditável de alguém que se passava por ela, Rosa Montero. E o que se insinua o tempo todo é que os escritores e artistas de que ela fala também encontram, de algum modo, um jeito de “lançar mundos no mundo”. Rosa tem humanidade e delicadeza para reconhecer na loucura alheia apenas, digamos, estranhezas, extravagâncias, que, afinal, não são exatamente raridades. E a investigação de Rosa passeia com muita inteligência para pensar a genialidade e a criatividade, mas também a doença e todas as fragilidades humanas. E ela é tão engraçada e maluca que se você não prestar atenção é capaz de não perceber a sutileza brilhante do que ela está tecendo.
são nossas coisas
Um brasileiro realmente bom, pra gente ter algum orgulho nessa vida
O escutador, Carlos Marcelo
Impressões de Minas/ 216 pp
Um livro que se disfarça de um livro recuperado, em que em outro livro está sendo escrito, afora o livro que vai por dentro, e outro por baixo, nas notas de rodapé. O óbvio adjetivo “borgeano” só não é perfeito porque a história aqui é mineira, demasiada mineira. O escutador do título é um profissional obsoleto como um tipógrafo dos anos 1950, alguém que escutava as histórias dos folhetinistas de imenso sucesso, para que as histórias não se percam. Ao tentar contar sua própria história de amor e mistério, é desmentido, ou pelo menos relativizado, por uma implacável e improvável editora, Virgínia Lemos, que vai caçando nas páginas deixadas as referências afetivamente roubadas dos escritores que ele mais admira — e que, aí sim, coincidem com as admirações do Carlos Marcelo, o maestro que organiza o carnaval. Romance de formação do jovem escutador Ademir Lins, que perde as suas ilusões não no clássico balzaquiano, mas na Ilusão literária de Eduardo Frieiro — um desses autores de que falei na introdução, e de que só os membros da KGB literária têm as chaves. Nas páginas, mais dezenas de citações, de Rosa e Drummond, com edificantes passagens que jamais se pretendem edificantes, a personagens que acabaram obscuros num Brasil ruim de memória — e quando a gente encontra Cyro dos Anjos, Pedro Nava, mais uma pequena multidão dessa gente que ficou pra trás num país que não lê, dá uma alegria de descoberta de pérolas. Ademir Lins sabia disso, e constrói seu livro colando trechos e emulando estilo, e na confusão do que é livro novo e o que é livro velho, se desenha uma história irônica, liricamente debochada, engenhosa o bastante para ter cara de clássico, ainda que sua intenção seja justamente essa: escrever hoje com um sotaque de década de 1950, não por acaso uma época em que a leitura fazia tanto sucesso. Uma baita construção literária.
PS. A edição da Impressões de Minas é uma pérola, como tudo que eles fazem, não só porque entra na narrativa com capa e sobrecapa e ajuda na confusão maravilhosa que é dar a sinopse deste livro. Mas também na diagramação da década de 1950, no conforto das entrelinhas, das margens gordas e no papel maciozinho que faz ficar tão gostoso de ler.
são nossas coisas 2
Um brasileiro realmente bom, pra gente ter algum orgulho nessa vida
Janelas irreais, Felipe Charbel
Relicário / 188 pp
Mais um livro que é difícil dizer se é um romance, um diário ou um grande ensaio, passeando com seus pequenos ensainhos. O narrador tem o insight desesperador e delicioso de que o que vale nessa vida é reler, e traça um plano de revisitar suas leituras preferidas atento às entrelinhas, ou melhor, às anotações que ele fez na primeira leitura. Não sei se você, que me lê, já fez isso, mas é ridiculamente absurdo passar os olhos de novo por aquilo que nos impressionou tanto da última vez, porque os grifos e as páginas dobradas revelam uma versão de nós mesmos que estava, na primeira leitura, muito envolvido em puxar a sardinha do texto pra brasa na nossa própria fogueira. Este é um livro sobre isso: sobre como a cada momento o livro se transforma, e poderíamos emendar Heráclito e dizer que, se não lemos duas vezes o mesmo livro, dá pra tirar, na segunda leitura, um retrato fiel, ainda que meio espantoso, de quem nós éramos quando aquelas palavras apareceram pela primeira vez. Nas releituras, grande elenco: O teatro de Sabbath, do Philip Roth, O ruído branco, do Don Delillo, Os detetives selvagens, do Bolaño, e mais um monte de livro que são só o fino. E ainda: o Felipe escreve bem demais (ele já apareceu n’A Lábia quando falei do Saia da frente do meu sol, que eu adoro), com finura e contundência, e é um professor erudito e sem empáfia, essa mistura que faz a nossa alegria.
Aulas!
Um livro que vale uma faculdade de letras selvagem
Mecanismos internos, J.M. Coetzee
Tradução Sergio Flaksman
Carambaia/ 384 pp
A força da austeridade meio mal-humorada do Coetzee só se compara ao seu rigor brilhante para falar de literatura. Os 21 ensaios deste livro foram publicados na New York Review of Books, e seguem um esquema que me parece perfeito para apresentar tanto autores consagradíssimos como Walter Benjamim e Samuel Becket, como para apresentar os que acabaram mais desconhecidos pela nossa falta de prática de leitura, como Günter Grass e Naipaul: de cada um deles, Coetzee faz um perfil preciso e sem gordura nenhuma, mas que apresenta, em uns pares de página, tudo de que a gente precisa saber. Depois mergulha no seu livro mais importante, situando o lugar dele na obra, na época e, lindamente, apontando seus mecanismos internos, como conta elegantemente o título. É engraçado como ele fala de literatura, porque tem uma sisudez de que alguém só é capaz porque é muito seguro de si — e ele conta as histórias como o professor de literatura que é, tão sério e compenetrado que a gente precisa olhar muito fundo pra perceber o que há ali de paixão e generosidade (mas que tem, tem).
***
Atrasei pela primeira vez uma edição d’A Lábia, e peço desculpas. Como eu disse, fui atropelada por uma gripe que me deixou burrra, me deixou burríssima, justo nest’A Lábia em que eu quis falar de livros tão inteligentes. Vocês perdoem. Mas tomem como um testemunho ou prova de que não basta ler para passar por inteligente. O borogodó vem com o tempo e a saúde do sistema respiratório, duas coisas quase imposíveis para quem, como eu, vive em São Paulo. Obrigada pela paciência.
Servindo bem para servir sempre, botei links em todos os títulos dos livros de que eu falo aqui. Você jamais encontrará um link da Amazon: são todos caminhos para as editoras que fazem esses livros incríveis. Claro que você pode comprar na livraria mais perto da sua casa, compre livros de quem ama os livros, sempre. Se for comprar na Amazon, paciência, entendo, mas pelo menos faça isso com culpa. Pode ser uma militância nanica, mas é a minha militância.
Inacreditavel a capacidade da Cecilio de fazer eu comprar livros. Essa mulher ainda vai salvar o mercado editorial brasileiro.
Nâo tem problema atrasar um pouco, porque dá tempo de ler os livros indicados na segunda passada... 😅😅😅