Não tenho a menor dúvida de que o melhor começo de livro de todos os tempos é o de Anna Kariênina:
Todas as famílias felizes se parecem, cada família infeliz é infeliz à sua maneira.
Para além do aforismo inquestionável, aquilo ali já é em si um romance de 850 páginas, com notas de rodapé, posfácio e quase dá pra ver a ilustração. De uma única frase, podemos tirar uma árvore genealógica, passos na escada, inesperadas traições, vestidos amassados, olhares furtivos, disputa por herança, no mínimo uma gravidez indesejada. Sem querer tirar uma letra cirílica da genialidade de Tolstói, eu chuto que a chave de tamanha incontinência de sentido é a palavra família. Família, disfuncional ou alternativa, tradicional ou disruptiva, tediosa ou incendiária, todo mundo sabe bem o que é.
Reformada a cada década agregando novas formas de existência (se eu contar a minha, vocês iam entender do que estou falando), corrompida inexoravelmente pelo moralismo cristão (ninguém passou incólume pelo congresso votando “pela família” a favor do golpe contra a Dilma) e habitat ideal para a larva da hipocrisia, a família sempre foi matéria prima de literatura. E se alguns dirão que é por ser a célula mater da sociedade, outros que é por ser a origem de todos os males. De Nelson Rodrigues a García Marques, há um elenco estelar de autores que se dedicaram, com maior ou menor grau de fúria, ao ninho familiar: Clarice, Raduan, Lucio Cardoso, Lygia, Graciliano, Mário de Andrade e, pensando bem, quase todo livro, tirando um ou outro psicopata como o Beckett, pra quem nada mais existe. Aliás, é tanto livro que pode ser encaixado nessa etiqueta, que o tema Família pode voltar a ess’A Lábia a qualquer momento.
Eterno cabo de guerra entre um ideal idílico de amor e acolhimento (o que é mais surrado que a imagem da família margarina?) e o campo de batalha em que são travadas as guerras particulares mais nefastas, a família se baseia em conceitos duvidosos como amor incondicional, ninho, ancestralidade, tradição e propriedade. Pois é. Prato cheio para autoritarismos de todas as espécies. Pra vocês não acharem que eu só leio o fino, essa semana mesmo eu li um livro duvidoso de um cientista que conta dramaticamente sua experiência entre a vida e a morte. Durante aqueles nanossegundos em que esteve “entre os dois mundos” (nem me falem) ele via seus familiares o chamando, e tentando se comunicar: “venha pra esse lado, estamos esperando você”. Considerando alguns parentes, a certeza do fim intranscendente e irreparável parece férias na Bahia.
Todos os livros sobre família se parecem, mas cada qual é infeliz a sua maneira. Pessoas obrigadas a conviver por laços aleatórios (genética não é escolha, não preciso explicar), cozinhadas num caldo grosso de ressentimento, culpa, cobrança, desprezo, alguma pátina do passado em comum, temperada com o eletrochoque de gerações, do tio do pavê, da fofoca e da futrica, da inveja e da insanidade geral, e pronto: eis a lauta refeição a ser servida em louças lascadas, sobre uma mesa com uma das pernas sempre mais curta. E a literatura, claro, vê nessa fórmula matéria para guerras de Troia, batalhas do Peloponeso e infinitas odisseias.
Mas os livros sobre família também salvam pelo humor, pela malícia, pelo olhar esperto ao imprevisto, a capacidade de reformar aquela construção tão sólida, erguendo ruínas que podem ser razoavelmente habitáveis. Eu juro que não queria que essa frase parecesse uma declaração da Damares Alves, mas, se a família está em toda parte é porque é o big-bang de todos nós. Incontornável e dolorida, sofrida e engraçada, vai ser sempre como dá pra ser, mas vai dizer tanto de nós e do mundo. E se nessa semana de outono em que se completam quatro anos da morte da minha mãe, num sábado de céu azul e ligeiro frio, ouço as músicas que ela me ensinou e fico tão absurdamente comovida, é porque a família está ali, enterrada em nós como o osso mais valioso do nosso cachorro imaginário. Tem livros que sabem lidar com essa dor e essa delícia. Que sorte a nossa.
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cardápio da semana
o mais mais
Um preferido da semana, aquele que dá pra indicar para todo mundo
O colibri, Sandro Veronesi
Tradução de Karina Iannini
Autêntica Contemporânea/ 336 pp
Talvez o tipo de livro que eu mais goste é o livro meio sem imaginação — porque narrar a vida do Ulisses é mole, mas vai contar a história de um homem comum. O Colibri, do título, é o apelido do Marco Carrera, um sujeito em tudo, absolutamente tudo, normal. Elo entre quatro gerações, o livro constrói, indo e voltando no tempo, uma família, entre os pais, a filha e a neta de Carrera. Tem amores arrebatadores e amores entediantes, tem paranoia e tem mistificação, tem passeios tranquilos e tentativas de suicídio (que cena linda), e tem todas as coisas grandiosas que acontecem na vida de uma família caótica, como é caótico o mundo. Carrera, o Colibri, fica lá batendo suas asas oitenta vezes por segundo, pairando no caos, meio olhando pra tudo, meio sendo protagonista, e resistindo, resistindo sempre, como colibri que é. O que é engraçado é que esse bater de asas num livro sobre um homem com uma trajetória comum é que é uma maravilha de linguagem engraçada, sutil, meio melancólica e muito terna, que vai envolvendo e a gente sai completamente apaixonado. E o tal do milagre da literatura é que, num livro sobre nada, ele fala sobre tudo — amor, morte, perda, doença mental, vingança, sobrevivência, família, herança. Tudo meio banal, tudo especialíssimo.
Ainda: saiu esse fim de semana a notícia até então bem guardada de que o Veronesi vem pra Flip. Vocês não imaginam minha alegria, colibri batendo as asas 80 vezes por segundo. Eu, se fosse você, não perdia.
passou batido
Uma pérola em que quase ninguém prestou atenção
As herdeiras, Aixa de la Cruz
tradução Marina Waquill
DBA / 308 pp
Quando a avó, Carmen, morre — e não simplesmente morre, mas se mata meio misteriosamente —, as quatro netas que moram longe têm de voltar à casa para decidir o que fazer com a herança. As quatro jovens mulheres são praticamente quatro arcanos, quatro arquétipos, impossível serem mais diferentes. O livro vai saltando de uma a outra, daquele jeito bom de ir revelando que cada uma tem sua verdade, e que a outra, as outras, vão sempre estar erradas. Uma é meio esotérica, outra adicta, uma traumatizada e uma médica muito racional que quer entender o que se passou com a avó. É embate, é loucura, é neura latino-americana e uma mulherada doida, cada qual com a sua razão. Pra além de tudo isso, ainda a necessidade de entender o que as une, o que sobrou da avó em cada uma, e como é que segue a vida depois da morte da unidade que a avó trazia. Misterioso e tenso, ensina um monte de coisa.
são nossas coisas
Um brasileiro realmente bom, pra gente ter algum orgulho nessa vida
Cantagalo, Fernanda Teixeira Ribeiro
Todavia / 288pp
Cantagalo é uma fazenda de café em Minas Gerais, na passagem do século 19 pro 20, aquele miolo da história em que tudo parecia estar acontecendo: pós abolição, pós Proclamação da República, um rabicho do ciclo do ouro, o ciclo do café torando. Desse fervo histórico sai a história de três gerações de uma família, com seus agregados e seus segredos, seus suspenses e suas surpresas. E é uma dessas histórias em que parece ter o Brasil inteiro: terra, família, costumes, escravidão, miscigenação, religião, poder. Eu levei um susto de ver um livro tão consistente, tão bem amarrado, tão bem escrito e com tanta coisa importante sobre costumes, organização social, economia, tudo de um jeito orgânico e sem aquela cara de livro que faz um esforço maior do que o talento do autor para ticar todos os temas que precisam ser discutidos hoje em dia. Entre a subjetividade encantatória de cada uma das preciosíssimas personagens e a estrutura histórica — violenta, desigual, de um país que é cordial até a página dois —, surge uma escritora iniciante bem impressionante, capaz de incorporar, mais que um sotaque do século 19, uma gama delícia de sotaques mineiros, e toda uma modelação dessas vozes, quando muda, por exemplo, de classe, de raça, de situação social. Nisso, Fernanda olha para o passado projetando o presente (ou vice-versa?), porque a história diz muito sobre o que nós somos, como país, como sociedade. Pra quem gosta de um romanção histórico, com tensão, aventura, surpresa e reviravolta, esse é totalmente o livro do ano.
soy loca por ti
Porque se tem gente que sabe pintar família doida é a América Latina
As primas, Aurora Venturini
Tradução Mariana Sanchez
Fósforo / 160 pp
A estreia de Aurora Venturini na literatura foi aos 85 anos, quando ganhou um prêmio literário que tinha no júri Mariana Enriquez, Alan Pauls e Rodrigo Fresán. Quando soube que tinha ganhado o prêmio, declarou impaciente: “Finalmente um júri decente”. Assim, segura e mal-humorada, aproveitou muitíssimo bem os últimos anos de escrita e reconhecimento, até sua morte aos 93, em 2015.
Neste As primas, Yuna Riglos, uma narradora não exatamente dotada de inteligência, conta a tragicómedia de que é feita a vida de sua família, um ninho de bizarrices, dor e glória, ascensão e muita, mas muita queda — algo escatológico, bastante psicótico, repleto de pessoas cheias de defeitos, o que se reflete num léxico maluco, coloquial, doentinho e muito engraçado. A própria linguagem se transforma para se misturar à maluquice da família, e às vezes a gente tem a sensação que este é um livro contra a linguagem, como se a literatice fosse mais um ser estranho, tentando por força se adaptar àquela família inadaptável. Nessa desordem alegre e caótica, Yuna vai crescendo entre as primas e os tios, essas pessoas meio abandonadas que enfrentam, além da miséria, uma constelação de deficiências físicas e mentais. Nesse ninho cruel e debochado de insanidade, os desenhos incríveis que Yuna faz chamam a atenção de um professor, e seu talento de pintora é a chance de escapar do destino familiar até então infalível como a morte. É um texto radical, esquisito, torto, mas capaz de belezas espantosas — como a própria arte de Yuna.
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Deixo aqui a foto da Aurora, pois estilêra e belíssima.
imagem e ação
Uma imagem vale mil palavras que valem mil imagens
Infelizes à sua maneira, Lucas Verzola
Editora incompleta / 94 pp
Outro dia a Mariana Delfini disse coisas importantíssimas sobre não poder fazer crítica de quem a gente conhece, ou é amigo, porque destrói imediatamente a legitimidade da crítica. Li, lembrei do video maravilhoso do Orson Welles defendendo o exato contrário e, antes de ser soterrada por culpa e crise, com um tapa na minha própria testa, lembrei que não sou crítica, mas leitora entusiasta, e aí posso falar em paz dos livros dos amigos que eu, de fato, adoro. E tendo ganhado esse auto salvo conduto, vou falar do Lucas, que é meu amigo, é verdade, mas não por isso deixa de ser um contista finíssimo, aliás militante do conto no que ele tem de joia lapidada, mas também de mistério, de humano, de estranheza. Nesse livro, que tem a forma de um álbum de fotografias, Lucas resgata umas fotos tão maravilhosas quanto são as fotos das famílias alheias, e vai, em contos curtinhos, inventando cenas, casos, caos e tensão para cada uma. É um ponto de partida genial, porque em cada foto parece que tem os elementos do conto em estado bruto: olhares ancestrais, a relação entre as pessoas, aquele passado ruminado, e roupas, e gestos, e incômodos, e até umas esperanças. É pura memória, erguida ali ora de crueldade ora de doçura, como são feitas as memórias familiares. E o texto do Lucas é tão chique que eu até superei a minha proverbial birra contra livros na horizontal. Meu livro mora na mesa da sala, e gosto de abri-lo como um perverso oráculo e voltar a ler a história das personagens arrancadas da foto, como uns pequenos vodus que ganham seu encanto e sua maldição.
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“A família é o inferno de todos nós”, diz Nelson Rodrigues, o arauto absoluto das desgraças familiares. É uma frase bem astral para mandar na segunda-feira que precede à Páscoa, quando estaremos todos reunidos em torno de um bacalhau. Mas o Bolsonaro está quase preso, e eu não vou desperdiçar a chance de tripudiar minha justiça histórica entre cacos de ovos de chocolate quebrados.
Servindo bem para servir sempre, botei links em todos os títulos dos livros de que eu falo aqui. Você jamais encontrará um link da Amazon: são todos caminhos para as editoras que fazem esses livros incríveis. Claro que você pode comprar na livraria mais perto da sua casa, compre livros de quem ama os livros, sempre. Se for comprar na Amazon, paciência, entendo, mas pelo menos faça isso com culpa. Pode ser uma militância nanica, mas é a minha militância.
Ana do céu, você precisa ler Amanhã Tardará, do Pedro Jucá.
Eu fui até resgatar aqui um trecho do livro que fala sobre família, porque acho que tem tudo a ver com o seu texto.
“Família é brutal. Arena de touros, rinha de cães. Ceitil de civilização, refinada barbárie. Gérmen de todo amor, todo cuidado, toda compaixão, paragem última de todo ódio, todo medo, toda morte. Dela, começo e fim da marca humana: que outro bicho conhece a vingança? Que outro animal se apraz na dor?”
O livro é lindo.
Seu texto também é lindo. Que delícia começar a semana com A Lábia.
Uau, Sandro Veronesi na FLIP??? Já bota o Carlo Rovelli sentado com ele no mesmo avião (mas sem o Inominável, por favor!).