A Lábia 08______Carnaval
"Eu estava trepidante, com uma ânsia de acanalhar-me, quase mórbida."
Essa declaração febril e deliciosamente sincera está num dos contos mais perversamente safados da literatura brasileira, “O bebê de tarlatana rosa”, do João do Rio. Um sujeito conta a amigos a história de um Carnaval em que ele, nessa situação “trepidante”, depois de beber champagne em festas mais bem apessoadas, decide com os amigos “acanalhar-se, enlamear-se bem” e tem a ideia de ir ao baile público do Recreio. Lá, logo esbarra com uma pessoa fantasiada de bebê (se é um, uma ou ume bebê, jamais saberemos), com uma máscara instransponível de tarlatana (um tipo de gaze mais grossa, como nas telas das máscaras dos bate-bolas). Os dois se pegam gostosamente, e se encontram no outro dia, e no último dia de novo, sempre pelas esquinas e becos, aquela coisa de duzentas mãos, um milhão de dedos, e, apesar da quentíssima atração sexual, nunca que o bebê tira a máscara, sempre escapulindo pela madrugada. Enquanto eles se atracavam, o narrador, desesperado meio de tesão meio de saber que o Carnaval estava acabando, tenta tirar a máscara do bebê, que ao oferecer a boca da máscara, parece “uma possessa que tem pressa”. Aparentemente na década de 1910 o bordão “não é não” ainda não vigorava, e o narrador, num ímpeto, arranca a máscara do rosto. Estão preparados?
Presa dos meus lábios, com dois olhos que a cólera e o pavor pareciam fundir, eu tinha uma cabeça estranha, uma cabeça sem nariz, com dois buracos sangrentos atulhados de algodão, uma cabeça que era, alucinadamente, uma caveira com carne… Despeguei-a, recuei num imenso vômito de mim mesmo. Todo eu tremia de horror, de nojo. O bebê de tarlatana rosa emborcara no chão com a caveira voltada para mim, num choro que lhe arregaçava o beiço mostrando singularmente, abaixo do nariz, os dentes alvos.
— Perdoa! Perdoa! Não me batas! A culpa não é minha! Só no Carnaval é que eu posso gozar. Então aproveito, ouviste? Aproveito. Foste tu que quiseste…
Pequena matilha de Bebês de Tarlatana Rosa, nessa foto estupenda do José Medeiros.
Bom, o narrador, pistola da vida e horrorizado, dá uma semi-surra no pobre bebê e foge daquele “atroz reverso da luxúria”.
O conto é maravilhoso e é terrível, e, como o bamba dos bambas Luiz Antônio Simas me contou numa privilegiada tarde n’O Bode Cheiroso, tem muito da relação do João do Rio com esse submundo: um desejo curioso e ardente, misturado a um medo que poderia ser paralisante, mas não é. É o menino que, morrendo de medo do escuro, vai atrás do seu próprio alumbramento. Meio que o Carnaval, né.
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Contei esse conto terrível não como desestímulo pra ninguém, que as chances de alguém trombar com um bebê são praticamente nulas. Já se falou que a própria ideia de Carnaval — essa do “só no carnaval eu posso gozar”, porque é quando tudo é permitido — já mudou demais e se antes a festa era uma multidão de anônimos que se encontravam e se perdiam na cidade, num caldeirão de gente louca e permissividade social, hoje o Carnaval é antes de tudo instagramável e mesmo eu, que por idiossincracia absoluta fujo do Momo há alguns anos, sei perfeitamente onde cada um de vocês enroscou a sua meia arrastão. Tá tudo excelente, porque se tem um conceito de base da folia que permanece imutável é que cada um desce do bonde conforme lhe apetece.
Mas como, do fundo do mato-virgem no qual me encontro, meus olhos digitais ainda acompanham vocês desfrutando a merecida farra, vou vestir a fantasia de cronista e não vou desperdiçar dicas de livros nessa segunda de Carnaval. Longe de mim pregar nesse deserto que há de ser o substack no meio da folia pra dizer que nada se compara à companhia de um livro (Ronca, Brasil!, como diz minha amiga Clarice). Mas vou contar ainda uma bela história carnavalesca.
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Eu sou fascinada por um livro de umas oitocentas páginas e uns seis quilos que reúne a vastíssima correspondência do Mário de Andrade com o Manuel Bandeira. Como é sabido, o Mário era um missivista hercúleo e obsessivo e respondia carta de cachorro e gato. Todo mundo tem carta do Mário. E são bem escritas, engraçadas, coloquiais, cheísssimas de superlativos. Pois bem. Esse oceano que são as cartas com o Bandeira tem a particularidade de ser muito importante, porque é uma pororoca do arauto da cultura paulistana com o embaixador do mangue no Rio de Janeiro. Os dois conheciam todo mundo, falam de todo mundo, fofocam deliciosamente (o Mário dizendo que o Villa-Lobos é meio burro é um grande momento; outro é o Bandeira dizendo que o Lobato “é um canalha, cuja palavra não merece fé”). Eis que um dia Mário anuncia que vai passar o Carnaval no Rio. E os dois ficam várias cartas combinando o roteiro. Vão à casa de um, Bandeira quer apresentar não sei quem, planos para o livro tal, um passeio em Petrópolis etc. Até que, depois de um silêncio considerável no ritmo frenético da troca, descobrimos, por uma longa e caraduríssima carta de desculpas do Mário, que ele foi ao Rio e deu um cano fenomenal do Bandeira. Sumiu. Se perdeu no primeiro cordão em que se enroscou e não teve livro, Petrópolis, nem conversa literária nenhuma. Um trechinho, porque é gostoso demais:
Meu Manuel… Carnaval!… Perdi o trem, perdi a vergonha, perdi a energia… Perdi tudo. Menos minha faculdade de gozar, de delirar… Fui ordinaríssimo. Além do mais: uma aventura curiosíssima. Desculpa contar-te toda esta pornografia. Mas… Que delícia, Manuel, o Carnaval do Rio! Que delícia, principalmente, meu Carnaval! Se estivesses aqui, a meu lado, vendo-me o sorriso camarada, meio envergonhado, meio safado com que te escrevo: ririas. Ririas cheio de amizade e de perdão.”
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José Medeiros flagra belíssimas foliãs, que, sabemos bem, não foram a causa da perdição do Mário.
Pois fico com o Mário, e desejo que vocês se percam na folia. Acanalhem-se! Trepidem! Sejam ordinaríssimos! Percam tudo! E quando a ressaca bater, entre engovs e novalgina 1g, vocês voltam por aqui para a próxima A Lábia, que estará esperando com esse sossego por vezes perturbador, mas sempre silencioso, cheio de livros frescos.
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Notas para um quarta-feira de cinzas
. As duas fotos dessa cartinha são do piauiense José Medeiros, que, com a fotografia, fez poesia das boas sobre o Rio de Janeiro, e que estão lindamente disponíveis no site do acervo de fotografia do Instituto Moreira Salles. Quem sugeriu mui certeiramente foi o Flávio Pinheiro, o homem que leu todos os livros e viu todas as fotografias do mundo, e que pra minha sorte é meu amigo.
. Muito mais séria que esta cartinha patife é a coluna “Pequena antologia carnavalesca”, do Sérgio Rodrigues, na Folha, em que ele faz um belo apanhado de textos brasileiros sobre carnaval — de Clarice Lispectos e Rubem Braga a Aníbal Machado, passando também pelo “O bebê de tarlatana rosa”.
. Quando eu estava sofrendo pensando em quais livros indicar, me presentearam muito gentilmente com essa tirinha do genial Ricardo Coimbra, o mais ácido dos desenhistas-filósofos deste país, que tem um livro absurdo que é o Desabamento ornamental. O Coimbra tem o dom do desconforto, de deixar constrangido o mais mais desbragado vaidoso, o que é uma qualidade nada desprezível. Foi graças a ele que vi o quão ridículo seria indicar livros no Carnaval, e a carapuça do mendigo apocalíptico me serviu como uma luva. Agradeço demais a ele por gentilmente autorizar que este edificante quadrinho chegasse até vocês pel’A Lábia.
Hoje não tem link pras queridas editoras, porque não tem livro — quer dizer, se quiser muito uma dica, vá ler o João do Rio. O conto O bebê de tarlatana rosa está em várias antologias, é fácil de achar. Também dá pra ler o poema Carnaval carioca, do Mário, que conta em versos, com mais estilo e menos safadeza, a história do perdido que ele deu no Carnaval. O poema é lindíssimo.
Pra mim, que gosto do carnaval, mas não pratico nem sob ameaça, adorei ler esta Lábia de confete e serpentina.
Seus textos são extremamente saborosos!