Raskólnikov, o atormentadíssimo protagonista de Crime e castigo, comete o erro de assassinar a sua inefável senhoria e o resto é tudo desdobramento dessa culpa maciça, de cortar com faca. Engraçadinha, da tragédia suburbana do Nelson Rodrigues, passa a primeira parte do livro errando na seducência imoral, e a segunda errando em nome de uma virtude tão convicta quanto inalcançável. O Capitão Ahab, em Moby Dick, erra ao levar sua obsessão às raias da loucura e assim bota a tripulação, o barco e a si mesmo em risco. Édipo errou ao ignorar o oráculo — e esse, como sabemos, errou rude. Romeu e Julieta erraram um depois do outro na encenação do suicídio. Emma Bovary e Anna Kariênina, essas duas mulheres tristes, erraram ao encarar o adultério com a alegria da irresponsabilidade e foram ainda mais tristes, ainda mais tristíssimas, pagando o preço terrível de amar demais — sobretudo sendo mulher. Lady Chatterley, a despeito dos momentos agradabilíssimos (e bota agradáveis nisso) que passou na cabana do guarda-caças, se viu um dia às voltas com seu erro inapelável, obrigada a lavar cuecas e cozinhar o repasto do arrependimento para um boy que, passado digamos o calor da hora, não era lá exatamente o príncipe encantado rústico que ela vislumbrara.
O que mais tem na literatura é erro — o da ganância, o de uma avaliação prévia e inconsequente, o de se deixar levar pelo desejo, o de escolher o caminho errado, o de ignorar o que o coração manda. Casar errado, amar errado, negociar errado, escolher errado, erros mínimos e erros gigantescos, morais ou apenas de cálculo, causados por curiosidade ou amor verdadeiro, tudo, conforme se vê em qualquer passeio pelas estantes, é matéria de literatura e quase dá pra dizer que a história da literatura é a história de todos os erros. Eu tenho a maior simpatia por gente que erra, maior ainda por gente que confessa que erra, e se lamenta, num gesto quase metafísico de bater a palma da mão na testa e exclamar: “Que erro, meu deus!'“. É o famigerado “quem nunca”, e essa simples fórmula, brasileira e simplória, é uma máxima de empatia, pertencimento e infinito reconhecimento de que somos a única espécie que pensa e ri, mas também a que erra moralmente.
Nas longínquas aulas de Literatura Brasileira que eu assistia meio de contrabando — a minha faculdade era vizinha ao departamento de Letras, e eu, com medo de que houvesse sido um erro estar neste em vez de naquele lado do corredor, escamoteava as manhãs assistindo às aulas de Literatura Brasileira e Grega na Faculdade de Letras —, ouvi um dia o professor João Alfredo Hansen contar que o padre Anchieta, para catequizar os indígenas, inventou de escrever sonetos, rimados e metrificados impecavelmente à moda portuguesa mas em tupi-guarani, de modo que os indígenas seriam abatidos não apenas pelas escopetas imorais da colonização, mas também pelo tédio incontornável de sonetos católicos a serem impingidos a seus ouvidos selvagens. Assim, pensava o padre, os indígenas introjetariam o pensamento europeu e católico não apenas pelo sentido das palavras, mas pelo som, pelo ritmo, pela respiração (ritmo e rima, vejam bem, que nunca tinham passado pela cabeça airada e cheia de sol dos anfitriões da terra brasilis). Para tanto, ele vai inventando correspondências entre as palavras em tupi e os conceitos católicos, e ali acochambra significados de Virgem, Virtude, Deus (“tupã”, por exemplo, era o som do trovão, que metia medo e foi adaptado para significar essa voz de um Deus suficientemente ameaçador e inexplicável). A única palavra que não tinha um correspondente no léxico conhecido era justamente “pecado”, que aparece deslocadamente (obscenamente?) em português. Eles não tinham ideia de um erro moral, um erro transcendente, um erro que não era de mira, prático, mas da alma. E aparentemente foi necessário introduzir essa palavra estranha e estrangeira para convencer os indígenas que, ainda que na ignorância, eles estavam errados. Fiquem com essa informação levemente irresponsável da minha memória universitária, e quem souber mais disso que venha corrigir meus erros.
Quem nunca errou que atire a primeira pedra. A máxima, bíblica e duvidosa, tem um quê de ameaça com laivos de uma espécie de vingança kármica, como se dissesse pra não apontar o dedo pra ninguém porque de algum lugar do passado tem um erro seu te olhando. Ora, o que mais tem no mundo é gente tomando decisões erradas, e o catequismo moleque do Oswald de Andrade no Manifesto Pau-Brasil ensinou que é preciso ter carinho e respeito pela “contribuição milionária de todos os erros”, os gramaticais e todos os outros — o Oswald sabia disso como ninguém.
Hoje, portanto, vamos de livros sobre decisões erradas. Sobre gente que fez literatura aceitando que, sim, errar é humano, e que neste reconhecimento está também uma beleza de tentar de novo, de falhar de novo, de falhar melhor, como disse o Beckett. Uma espécie de literatura errótica (perdão, trocadilho, esse meu erro cotidiano e fundamental), que celebra nossa humanidade falha e capenga, mas que, vá lá, é a nossa humanidade.
Termino com esse poeminha do Leminski, que tem trocadilho no título, e que disse ao que veio.
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cardápio da semana
o mais mais
Um preferido da semana, aquele que dá pra indicar para todo mundo
Bouvard e Pécuchet, Gustave Flaubert
Tradução Marina Appenzeller
Estação Liberdade/ 400 pp
Bouvard e Pécuchet são dois escreventes patéticos e entediados, que se tornam amigos pela ingenuidade inabalável e pela vontade de acertar demais. Quando um deles recebe uma herança, abandonam o emprego em Paris, mudam-se para uma propriedade no campo e passam, capítulo a capítulo, a investir tempo e dinheiro em empreendimentos ousados e espetaculares, que querem nada mais nada menos que mudar o mundo. Para cada campo ao qual se dedicam com o fervor da paixão, devoram livros e livros (que foram devorados também por um obcecado Flaubert), numa ideia um tanto equivocada de que basta estudar muito, estudar tudo para se dar bem. A cada capítulo, vão fracassando em matérias diversas: Agricultura, Química, Medicina, Arqueologia, Arquitetura, Literatura, Gramática, Política, Amor, Saúde, Espiritualismo, Religião, Educação, Artes — nenhum campo do conhecimento passa incólume ao fracasso miserável dos dois. É divertido e levemente angustiante, mas carrega a marca indelével da humanidade, essa que erra querendo acertar, e cujo maior erro, talvez, seja esse de recusar os próprios erros.
Obs. Quando fui buscar a edição para indicar aqui, vi que esta pérola está fora de catálogo na Estação Liberdade, edição que eu li há algumas décadas. Editoras, corrijam esse erro. Um clássico é um clássico.
passou batido
Uma pérola para você prestar atenção
Ausente por tempo indeterminado, Julio Ramón Ribeyro
Tradução Ari Roitman e Paulina Wacht
Carambaia/ 192 pp
Torto, tímido, errante, inseguro, o narrador de Julio Ramón Rybeiro tem aquele charme pessimista e meio engraçado de gente que sabe que, como disse o Leminski, só o erro tem vez. Não à toa, a sua autobiografia tem o título que pra mim parece a perfeição dessa personalidade tíbia que, a despeito de saber que vai errar, erra de novo e novo: A tentação do fracasso. Seus temas são os menores, suas atitudes, titubeantes, suas conclusões, pequenas como seus temas. É melancólico, é claro, mas também é engraçado, empático e humano. Essa coletânea é uma pérola, e a modéstia dos pressupostos é inversamente proporcional ao imenso prazer de ler este autor que parece, a cada texto lido, cada vez mais amigo — aliás, fenômeno engraçado, o Julio Ramón já me apresentou grandes amigos que vieram quando eu soube que tínhamos ele em comum (um beijo, Marco Severo). Nos contos deste livrinho, tudo é frustação e insistência, seja no projeto fracassado de parar de fumar (“Só para fumantes”), seja num encontro de senhoras que discutem a literatura de um jovem autor (“Chá literário”), seja num escritor tentando entender como errar menos numa história de adultério (“A solução”). Mas tem mais, e alguns contos são difíceis de definir, essa prosa manquitola e amiga de um contador de histórias gênio.
errar para contar
Às vezes uma erradinha é necessária para que a história aconteça
História do cerco de Lisboa, José Saramago
Companhia das Letras, 392 pp.
Raimundo Silva é um pacatíssimo e obsessivo revisor de livros de história, que um dia vê a sua calma abalada pelo amor de Mara Sala. Sujeito que vive enfiado nos livros, é meio natural que a paixão se derrame e se misture ao trabalho. Acontece que nesse auge da paixão ele está revisando um livro sobre a tomada de Lisboa aos mouros em 1147 e aí as histórias dos dois “cercos”, o de Lisboa e o do coração do pobre Raimundo passam a ser misturadas. Querendo, literalmente, mudar os rumos da história, o até então eficiente revisor introduz um erro no livro, uma simples palavra “não”, e a partir dessa falsificação voluntária inventa as possibilidades de um amor impossível. Os oito séculos que separam um cerco do outro vão sendo misturados daquele jeito meio febril do Saramago, e a crônica do amor ganha a grandeza de um acontecimento fundador de uma nação. Sei que o Saramago é uma espécie de coentro literário, ame-o ou odeie-o, mas esse é particularmente divertido e maluco, que é o que a gente quer dos grandes livros.
Pois bem, errei de não deixar ess’A Lábia pronta antes, e me distraí deliciosamente na Feira do Livro do Pacaembu, que me deu tantas alegrias. Amanhã, terça, tem a coletiva de imprensa que anuncia o programa completo da Flip, cheia de coisas que eu pensei com carinho para, espero, errar o mínimo possível. Se eu animar, vou contando aqui também sobre os livros que estarão na festa, que é um jeito de antecipar essa ansiedade boa.
Servindo bem para servir sempre, botei links em todos os títulos dos livros de que eu falo aqui. Você jamais encontrará um link da Amazon: são todos caminhos para as editoras que fazem esses livros incríveis. Claro que você pode comprar na livraria mais perto da sua casa, compre livros de quem ama os livros, sempre. Se for comprar na Amazon, paciência, entendo, mas pelo menos faça isso com culpa. Pode ser uma militância nanica, mas é a minha militância.
Tem Reparação, do McEwan. Mistura erro e criança = desgraça total
Adorei que você usa a palavra "boy", porque agora não tenho mais nenhuma dúvida que ela faz parte da língua portuguesa (bói?).