A Lábia 13______Inteligência
"Não há nada tão equitativamente distribuído no mundo como a inteligência: todos estão convencidos de que têm o suficiente."
Apesar de ter passado uma vida razoavelmente a salvo de vícios perniciosos, eu nunca fui exatamente um modelo de virtude. Por isso o lema ancestral que me move basicamente na vida, que poderia ser de autoria do Mr. Catra ou do Montaigne, é “deixa as pessoa”. Não que eu não me irrite, não que eu não sofra todos os dias esse sentimento incômodo e agudo que é a vergonha alheia — eu sinto, e muito, mas tem uma hora que a gente simplesmente deixa as pessoa, e aí ou ri, ou para de seguir ou só se irrita mesmo, porque a irritação é um memento vivo (eu sei, isso não existe), aquele confere de que o sangue continua circulando e de que seguimos atentos. Bom, imagino que já esteja claro que estou falando da vida virtual, este infinito pasto em que a humanidade não economiza em ruminar sua vergonha. Essa semana, entre a pegadinha do Felipe Neto presidente e o enxurrilho de imagens “tipo studio Ghibli”, vi, perfil atrás de perfil, toda humanidade muito empenhada em oferecer ao mundo a própria imagem com olhos redondos, doçura no olhar e aquela estética “fofinha”, tipo uma mauriciodesouzazização do mundo. Que ideia, minha gente.
Vou poupá-los de pregar aqui o quão estamos prestes a ver a dominação do mundo pelas máquinas, numa bossa 2001: Uma odisseia no espaço; que ainda não temos ideia do quão perverso para os artistas é o uso desgovernado da IA; que ainda não sabemos nada sobre o tamanho do impacto disso no jornalismo e na leitura do real (tem um video da Paula Miraglia, que inventou e faz o Nexo, duzentas vezes mais elucidativo do que qualquer coisa que eu possa dizer). Vou poupá-los e me resignar a passar raiva silenciosamente, direto da minha própria casa, envolta nessa realidade que, se não tem o encanto dos olhos redondos do Ghibli, também não consome não sei quantos mil litros d’água por meme. Esteticamente é de uma cretinice lapidar, eticamente é indefensável, politicamente é pernicioso e aviltante. Mas, pessoalmente, sobretudo, eu acho burro. Porque assume uma inabilidade humana pra criar as coisas, entrega os pontos no que diz respeito ao pensamento e à criação, ou seja, o que deveria ser o nosso maior deleite enquanto humanos, a alegria de fazer por fazer, como se o ato do pensamento e da criação valesse por si só. A frase ali em cima — “Não há nada tão equitativamente distribuído no mundo como a inteligência: todos estão convencidos de que têm o suficiente" — é do filósofo René Descartes, e pra mim tem muito mais verdade do que a surradíssima “Penso, logo existo”.
Negar, no entanto, a iminência da IA é como estar no lugar de quem dizia que o som do cinema “não ia pegar”, que filme “de verdade” era o cinema mudo. E eu sei que é um instrumento poderoso para montar projetos, elaborar planilhas, traduzir emails e burocracias que tais — e seria adorável pensar que tanta tecnologia viria pra tirar a gente dos trabalhos forçados de quebrar pedras digitais. Acho que não preciso dizer que essas cartinhas semanais indicando livros são o contrário disso, porque aqui o que vale é aventura & paixão. Mas resolvi pedir para o ChatGPT escrever “um parágrafo de introdução a uma newsletter com dicas de livros, que fale sobre o hábito de leitura e as vantagens de ler”. Foi um approach preguiçoso, vá lá, e eu entendo que a IA é um oráculo adestrado — se a resposta for ruim, a culpa é minha etc. Mas vejam só:
Bem-vindo à nossa newsletter literária, onde os livros são os melhores amigos e a leitura, a mais deliciosa das aventuras! Aqui, a única maratona que aceitamos é a de páginas viradas, e o único peso que carregamos é o de uma boa história nossas em mochilas. Prepare-se para mergulhar em dicas de livros que prometem fazer você rir, chorar e, quem sabe, até questionar a sua existência... tudo isso sem precisar sair do sofá! Então escaneie sua estante, limpe a poeira dos clássicos e prepare-se para descobrir obras que podem ser mais surpreendentes
Que metáforas, que prosódia, que vírgulas equivocadas. Este senhor escreve com as quatro patas fincadas no chão e desconfio, queridos leitores, que ele está tratando você como idiotas. Quando eu leio uma coisa assim, eu só penso em burrice. A burrice inócua das metáforas gastas, a burrice convicta dos mesmo velhos lugares comuns. A maior alegria do pensamento é o próprio pensamento, nesse tipo de viagem que a paisagem importa mais do que o destino. Pensar, pensar bem, imaginar com beleza (e também com medo, com desgraça, realismo e tudo mais) é a melhor parte de ser humano. Não acredito que a gente vai abrir mão disso tão fácil.
(Enquanto escrevo isso me sinto tão ingênua quanto, sei lá, o “Cérebro eletrônico” do Gil. Mas a inteligência é minha e eu faço com minha ingenuidade o que eu quiser.)
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Ainda uma palavra sobre inteligência e imaginação: vocês devem ter visto o caso do juiz que fingia ser britânico. Sob o deslumbrante nome de Edward Albert Lancelot Dodd Canterbury Caterham Wickfield (não me conformo) enganou a Faculdade de Direito da USP, a magistratura, o tribunal federal durante mais de quarenta anos. Descobri em impagáveis e esparsos posts que ele tinha sotaque inglês e que fazia fono “para perdê-lo”. Que deixava no ar, botando na conta de uma discrição elegante, que seria convidado para casamentos reais. Enganou todo mundo até que, no Poupatempo da Sé, descobriram, pelo uso das impressões dígito-papilares, que na verdade seu nome era José Eduardo Franco (que não o era) dos Reis (tampouco). Parece que, ao ser confrontado consigo mesmo, ainda tentou uma história de que Edward Albert e José Eduardo seriam gêmeos separados no nascimento. De todo modo, até agora não há denúncia de golpe, fraude, crime maior que esse da dupla identidade. Mas o que me fascina é essa cabeça, essa inteligência a serviço da criação de uma ficção única. Absolute ficcção. Eu fico me perguntando: Por que inglês? Por que Lancelot Dodd Canterbury Caterham Wickfield? Por que ser juiz? Por quê? Claro que podemos botar na conta da doença mental, e eu sinceramente respeito e sou solidária. Mas, rapaz, que imaginação exuberante.
Ainda um teste, porque est’A Lábia já vai gigante. Perguntei ao ChatGPT:
Por favor, dê sugestões de nomes para um personagem homem que é um nobre inglês e faz parte da aristocracia britânica.
A resposta:
Aqui estão algumas sugestões de nomes para um personagem masculino que é
Senhor William Ashford
Senhor Victor Thorne
Duque Henry Montague
Esses nomes evocam um toque de sofisticação e tradição, adequados para a aristocracia. Sinta-se à vontade para combiná-los ou ajustá-los conforme necessário
Sinceramente, ChatGPT. Tsc.
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Eu poderia fazer uma extensão d’A Lábia da semana passada, que falava de mentira, e seguir na trilha dos golpes. Mas não. Num leve aplique retórico, vou indicar livros inteligentes, escritos por inteligências naturais, que requerem inteligências idem. Inteligência é a coisa mais sexy que existe. Porque é pela capacidade de concatenação que dá pra rir, pra tirar leite da pedra miserável dessa vida. Inteligência é pra se safar dos problemas, pra pensar a melhor forma de viver e pra dar risada — vejam aí, gente burra tem muito mais dificuldade de dar risada ou melhor: me mostrem um burro que seja engraçado (e não conta o humor involuntário e súbito de um ex-presidente falando inglês num carro de som na Paulista, por exemplo). Por isso a IA não tem humor, não tem charme e jamais terá borogodó. Mas isso, claro, ela jamais vai entender.
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cardápio da semana
o mais mais
Um preferido da semana, aquele que dá pra indicar para todo mundo
Manual da faxineira, Lucia Berlin
tradução Sonia Moreira
Companhia das Letras/ 536 pp
Tem os autores que a gente admira, e os autores que a gente ama. A Lucia Berlin é desse segundo tipo, porque com um talento monumental para contar histórias, ela vai fragmentando a própria biografia num mosaico de contos perfeitos, ferinos e afetuosos. E que biografia, a dela. Ainda criança, morou no Chile, acompanhando o pai, que trabalhava numa mina. Viveu em inúmeras cidades, passou por três casamentos, nos quais teve quatro filhos, trabalhou como professora, telefonista, faxineira e enfermeira. O alcoolismo, uma sombra melancólica contra a qual lutou com mais ou menos veemência, é uma espécie de moldura, que não deixa de gerar cenas assustadoramente humanas, porque revelam que a gente se move é entre a fragilidade e a força imensa. As quedas, as internações e a dureza de um cotidiano sempre meio precário alternam com o deslumbre que é uma mulher tão inteligente, tão amorosa, tão sensível a tudo que está em volta. Lucia é um manancial de inteligência, e quando a gente acaba de ler o livro dela acaba meio amiga, e dá saudade, e tem vontade de conversar com ela. E o que é mais bonito é aquela inteligência luminosa, aquela alegria até na desgraça e o jeito comovente como ela leva a gente pra perto das pessoas. Não é pouca coisa.
passou batido
Uma pérola em que quase ninguém prestou atenção
No degrau de ouro, Tatiana Tolstáia
tradução Tatiana Belinky
Editora 34 | 240 pp
Este é um livro estranho, com uma prosa misteriosa e meio amiga, porque o tempo todo a gente anda no limite entre o enredo mais simples e um universo meio fantástico. Tolstáia, a partir de um tipo de equilíbrio mambembe na vida dessas pessoas tão comuns, insatisfeitas com um cotidiano soviético — monótono e levemente temerário —, conta histórias de começo e de fim de vida, se desprendendo da estética soviética para vislumbrar um outro jeito de contar histórias (lançado em 1987, o livro conseguiu, de algum modo, ver o futuro). Mas a imaginação e a inteligência aparecem em pequenas explosões, e de repente a gente está achando tudo engraçado, mesmo essa terrível tendência do ser humano de ser essencialmente infeliz — como a Tolstáia afirma com muito mais estilo do que eu sou capaz. Tolstáia tem um olho no passado recente da literatura soviética, mas mantém sempre perto a tradição russa do século 19, dando a seus contos, sem dúvida nenhuma contemporâneos, um ar de fábula misteriosa.
são nossas coisas
Um brasileiro realmente bom, pra gente ter algum orgulho nessa vida
Vez em quando, Billy Holiday, Evandro Afonso Ferreira
Record | 128 pp
Eu perdi a conta de quantos livros o Evandro já escreveu desde Grogotó, um voluminho de contos curtos em que ele derramava a linguagem absurda que recolhia dos livros que lia e vendia e empurrava aos amigos que frequentavam o sebo dele em Pinheiros. Lembro de Grogotó, Araã, Erefuê, até que ele foi abandonando nos títulos as palavras que ele garimpava, e foi chegando em Minha mãe se matou sem dizer adeus e, talvez meu título preferido, Os piores dias da minha vida foram todos. Se eu enumero alguns títulos dele, é porque Evandro é um escritor forjado na leitura, na coleção das palavras, na invenção de um léxico. O resultado é meio assustador, porque raras vezes acontece um escritor monumental, com uma voz tão própria. Nesse mais recente, a história vem embrulhada no imaginário e na linguagem de um dos heróis do Evandro, que é o Rosa. E a história é de Diadorino, um menino que, no meio do sertão, quer se tornar Diadorina. O enredo simples é construído em meio a um ecossistema de citações, referências e, principalmente, palavras lindas, em diálogo com uma narradora que acolhe a linguagem, e que por vezes é tudo.
Livro truqueiro do mês
As perfeições, Vicenzo Letronico
tradução Bruna Paroni
Todavia / 112 pp
Aparentemente é um livro de controvérsias. Eu fui lendo e achando, ainda que engraçadíssimo, totalmente irritante. Um amigo, que é ótimo leitor, disse que é dos livros mais chatos possíveis, com dois protagonistas insuportáveis. Errado ele não tá. Tributo ao clássico As coisas, do surrealista George Perec, aqui como lá os protagonistas são uma unidade de casal, e a história é narrada na terceira pessoa do plural. No mais, cenário, enredo, desejos, cotidiano, ambição, tédio, tudo vai sendo pintado por uma lista infindável de objetos que são o alicerce disso que podemos chamar “retrato de uma geração”. Letronico compra a premissa de Perec e atualiza o método para substituir as taras intelectuais do francês no cotidiano hipster dos italianos morando em Berlim, cujos chão de taco e samambaias poderiam muito bem ser transportados para a Santa Cecília, em São Paulo. Mas o vinho natural e os objetos vintage garimpados não salvarão, jamais, o tédio da existência de desenraízados nômades digitais. Latronico é mais gentil com seus personagens do que eu seria capaz de ser, e se firma nessa sátira silenciosa para construir um romance que é truqueiro, sim, mas mesmo a boa ficção pode ser feita de truques. E se falta afeto, alegria e, numa palavra, vida, ele é muito hábil em retratar uma geração para quem falta, veja só, vida, como se a gente se desobrigasse de tentar qualquer autocrítica, porque as coisas são assim, como são. É irritante, mas também é muito divertido.
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Depois de ter escrito, fui dar uma conferida na frase do Descartes que funcionou como epígrafe, e vi que o tal bem “equitantivamente distribuído” pode ser tanto a inteligência como o bom senso — o que não estaria lá tão distante, mas abre outras interpretações. Eu, como a IA, espremo e estico palavras para caberem nas minhas teses, e se alguém reclamar, basta dizer que errar é humano.
Servindo bem para servir sempre, botei links em todos os títulos dos livros de que eu falo aqui. Você jamais encontrará um link da Amazon: são todos caminhos para as editoras que fazem esses livros incríveis. Claro que você pode comprar na livraria mais perto da sua casa, compre livros de quem ama os livros, sempre. Se for comprar na Amazon, paciência, entendo, mas pelo menos faça isso com culpa. Pode ser uma militância nanica, mas é a minha militância.
E pensar que no princípio da revolução tecnológica, a intenção era nos libertar dos trabalhos burros e repetitivos para que pudéssemos aplicar nossa inteligência superior na criatividade... Agora, querem nos libertar da nossa inteligência e criatividade para... Para quê mesmo? Consumir mais sem pensar e, dessa forma, manter a roda do consumerismo girando? Desculpe... Talvez seja meu, o problema. Minha inteligência não alcança explicação.
Essa lábia ficou uma coisa de boa!
Para além das demais, essa veio como sempre inteligentíssima, e ainda acolheu nossos corações dessa semana limitada virtualmente que a gente passou (em tempo: coisa chata que é o termo “trend” pra todo mundo obedecer a uma onda de ignorâncias na rede).